PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO
DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO
DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE
CLASSE
PEQUENOS ENSAIOS SOBRE MARXISMO E DIREITO, SOCIEDADE E ESTADO NA REVOLUÇÃO
Sob a Bandeira do Marxismo :
Crítica da Interpretação de Hans Kelsen
Sobre a Teoria Marxista do Estado e do Socialismo
SERGUEI VOLFSON[1]
Concepção e Organização,
Compilação e Tradução
Emil
Asturig von München, Julho
de 2005
Para Palestras e
Cursos sobre o Tema em Destaque
Contatar emilvonmuenchen@web.de
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Geral
http://www.scientific-socialism.de/PECapa.htm
Nunca antes o problema do Estado
foi tão significativo para os Partidos Socialistas como o é,
presentemente, nos anos do após Guerra Mundial.
Durante e depois da guerra, o
socialismo internacional confrontou-se com problemas
muitíssimos imperiosos, tais quais a Ditadura do Proletariado, a
Democracia, a participação no governo do Estado, o perecimento do Estado,
a liquidação do Estado, o Estado no período de transição e muitos outros
problemas, conectados com o fenômeno do Estado.
As soluções para esses problemas há
de ser fornecida antes de que se degenerem.
O problema do Estado tornou-se uma
linha demarcatória, separando os revolucionários dos reformistas, o
marxismo do oportunismo.
Em nossa época, os problemas do
Estado não são tão somente "Zeit- und Streitfragen" (questões
de tempo e de debate).
São, literalmente, problemas de
vida ou morte dos partidos políticos.
No prefácio à sua obra clássica
sobre o Estado, Lenin declarou que :
" ... no presente
momento, o problema do Estado adquire um significado especial, seja no nível
político teórico, seja no prático."[2]
Hoje, sete anos após terem sido redigidas
essas palavras, o problema do Estado sob a égide do socialismo não perdeu o seu
significado.
Pelo contrário : esse último se
tornou consideravelmente maior simplesmente porque o Estado Soviético ingressou
na arena política.
É, portanto, evidentemente natural
que a literatura anti-marxista dedique uma atenção extraordinária ao problema
da concepção marxista do Estado.
A literatura alemã, que merece
a mais ampla atenção, apresenta-nos um grande número de trabalhos volumosos,
devotados ao nosso problema.
Esses trabalhos podem ser dividos
em três grupos.
O primeiro deles se
posiciona abertamente contra o marxismo.
Seus membros são inimigos absolutos
do marxismo e tentam abalar a inteira concepção marxista do Estado.
Hans Kelsen e Friedrich Lenz
pertencem a esse grupo.[3]
O segundo grupo é formado por
pseudo-marxistas que destróem a essência revolucionária da teoria marxista do
Estado.
Na literatura alemã, esses
falsificadores oportunistas da nossa teoria do Estado são representados por Heinrich
Cunow e Herbert Sultan.[4]
Finalmente, pertencem ao
terceiro grupo amigos zelosos do marxismo, aqueles que defendem a teoria
marxista do Estado, mas que, ao defenderem-na dos ataques de seus
críticos, nela introduzem elementos reformistas e oportunistas.
Esse grupo dedica-se à
promoção da mais súbita - e, portanto, da mais perigosa - distorção do
marxismo.
Karl Kautsky e Max Adler
devem ser identificados entre tais pseudo-defensores da teoria marxista do
Estado.[5]
Em primeiro lugar, devemos ocupar-nos
com um dos líderes dos ataques anti-marxistas da atualidade, i.e. com Hans
Kelsen, um professor da Universidade de Viena.
Kelsen é a cabeça pensante da Escola
Formal (Normativa) do Direito.
Nos últimos anos, conquistou
numerosos seguidores entre os juristas ocidentais.
Publicou "Sozialismus
und Staat (Estado e Socialismo)", um
grande trabalho, dirigido contra a teoria marxista do Estado.[6]
Todo esse trabalho de Hans
Kelsen é uma incarnação da lógica formal, sendo que o
ponto de partida de seu raciocínio é uma norma jurídica abstrata.
Kelsen não se revela absolutamente
pertubado com o fato de que a abstração jurídica se situa em conflito
direto com a realidade.
Em um de seus trabalhos, intitulado
"Hauptprobleme der Staatsrechtslehre (Problemas Principais da
Doutrina do Direito do Estado)", Kelsen declara o seguinte :
"As
objeções que são freqüentemente formuladas contra o método formal
puro - ao alegar-se que esse método produz resultados insatisfatórios,
porque falha em abarcar a vida real, deixando a verdadeira realidade
jurídica inexplicada - fundam-se em uma completa incompreensão da
natureza da Ciência do Direito que não aspira nem ao abarcamento
da verdadeira realidade nem à "explicação" da vida."[7]
Assim, a crítica apresentada
por Hans Kelsen contra o marxismo é, pela sua própria
natureza, diametralmente oposta ao nosso método, i.e. ao método
sociológico que trata da vida real, em todas as suas manifestações, e não
meramente de uma realidade "lógica".
Os esquemas lógico-formais de Kelsen,
as ferramentas com as quais procura despedaçar os conceitos
marxistas acerca do Estado, constituem um exemplo inimitável de uma
abordagem metafísica de um dos principais problemas da moderna sociologia.
Esse fato torna difícil a
discussão a ser travada entre um marxista e Kelsen
: a argumentação deve ser conduzida em dois diferentes níveis
metodológicos.
Apesar de ser essa uma tafera
dificultosa, não é absolutamente impossível.
Hans Kelsen é um inimigo do
socialismo.
No prefácio à segunda edição de seu
livro "Sozialismus und Staat (Estado e Socialismo)",
Kelsen acreditou ser necessário acentuar, da maneira mais
enfática possível ("mit allen Nachdruck zu betonen"), que
seu trabalho não se dirigia contra o socialismo :
"Travo um debate
meramente com o marxismo e, no interior deste, exclusivamente com sua teoria
política. Não é o ideal socialista que se questiona aqui, senão a afirmação
marxista de que é possível materializar esse ideal sem o Estado."[8]
O Professor Hans Kelsen
discorda "meramente" do marxismo e, no interior deste, "apenas" o
faz relativamente à sua teoria política.
Trata-se realmente de uma farsa.
Podemos apenas dar boas
gargalhadas, quando um velho cientista, mentor ideológico de
uma escola amplamente difundida, admite ingenuamente que não é capaz de
entender que essa mesma teoria política é um elemento integrante,
inalienável, do marxismo.
Com efeito, o marxismo é uma
visão de mundo integral e harmônica, cujas partes estão
indissoluvelmente conectadas, suplementando mutualmente uma
às outras, fornecendo significado uma às outras.
Sem embargo, existem por aí ainda
alguns caçadores que agarram um "aspecto" do
marxismo -, i.e. a filosofia, a sociologia, a economia, a "teoria
política" - e arrancam-no do corpo vivo da teoria marxista.
Todos os críticos que procuram "destruir"
o marxismo deveriam entender, de uma vez por todas, que este é uma
visão de mundo, integral e harmônica.
O ponto de partida da crítica
kelseniana do conceito marxista de Estado é uma definição jurídico-formal do
Estado enquanto ordem coercitiva (Zwangsordnung) de Direito.
Em consonância com Kelsen,
a alegação de que o Estado é uma associação, fundada na dominação (Herrschaftsverband)
é crucial para a definição do Estado :
"Significa que a
ordem social, chamada Estado, é uma ordem coercitiva e que esta ... coincide
com a ordem jurídica."[9]
Ao caracterizar o Estado
como ordem coercitiva, Hans Kelsen
procura destacar dois pontos :
1. o primeiro é que a
necessidade de subordinação ao Estado não depende da vontade
subjetiva daqueles que constituem essa ordem ;
2. o segundo é que o
Estado exerce sua autoridade por meio de atos coercitivos.
Nem o objetivo social, perseguido
pelo Estado, nem seu conteúdo sociológico possuem algum significado para a
concepção de Estado de Kelsen.
O elemento deicisivo de sua
concepção de Estado é meramente a norma jurídica, contemplada do ponto de vista
a partir do qual o Estado surge como uma forma jurídica da vida social.
Em razão disso, não é
supreendente que Kelsen não esteja disposto e nem
seja capaz de conceber o fato crucial para o entendimento do fenômeno
do Estado, a saber : o fato de que o Estado persegue um objetivo social
definido, qual seja a subordinação de uma classe à outra.
Kelsen declara concordar com a
concepção marxista de que a definição de Estado, fundada na tese da
solidariedade de interesses, nada é senão uma ficção.
Porém, não consegue admitir
a idéia de que o Estado é um instrumento de exploração de uma classe por
outra :
"A definição de
Estado enquanto ordem que expressa um grande grau de coerção não
desprovida de importância, tal como é sustentada pelos marxistas. Por
outro lado, a identificação marxista do significado do Estado com a
dominação exploradora de classe, i.e. sua identificação com a opressão de uma
classe por outra, com o propósito de exploração, é inteiramente
inadmissível."[10]
Por que, então, Kelsen
opõe-se à "atribuição" marxista de tendências exploradoras e
de opressão de classe ao Estado ?
Opõe-se pelas seguintes razões
:
1. Em primeiro lugar, existiriam
Estados, cujo principal objetivo não seria a exploração econômica ;
2. Em segundo lugar, a exploração
econômica não poderia ser reconhecida como o único objetivo
do Estado moderno ;
3. Em terceiro lugar, seria
possível conceber um Estado que, em vez de promover a exploração, possa adotar
medidas contra esta ;
4. Em quarto lugar, ao introduzir
leis trabalhistas, bem como a proteção da atividade laboral etc., o Estado
moderno estaria exibindo tendências que apontariam para a própria
liquidação das contradições de classes.
As razões supra-elencadas
comprovam, de modo inteiramente nítido, o escolasticismo infrutífero da teoria
kelseniana.
Essas razões podem ser
aplicadas à abstração lógica que Kelsen designou como Estado,
porém são integralmente inaplicáveis ao Estado real e concreto, ao Estado
que existe na realidade histórica e não no âmbito de esquemas jurídicos.
Hans Kelsen alega que
existiria um Estado que não persegueria a exploração econômica.
Onde e quando um tal
Estado veio a existir ?
Na época do comunismo primitivo,
talvez ? Na época da sociedade sem classes, i.e. em
um tempo, em que o Estado ainda não existia ?
Certo é, porém, que quando o Estado
surgiu, a sociedade estava divida em classes, uma explorando a outra.
Além disso, Kelsen
defende que a exploração não é apenas o único objetivo de um Estado moderno.
Não consegue ver que o o objetivo
fundamental e supremo do Estado é assegurar a possibilidade de exploração de
uma classe por outra, proteger a divisão de classes da sociedade.
Essa é a única função social
do Estado.
As vetustas afirmações de nossos
oponentes no sentido de que o Estado vela pela saúde pública, pela educação
pública, que constrói ferrovias para todos os cidadãos, protege a
segurança de todos os cidadãos etc. - vale dizer, alegações que o
Estado desempenha funções de "utilidade geral" - são completamente
injustificadas.
Na realidade, o Estado, ao cuidar
do saneamento, ao construir ferrovias, está assegurando os pré-requisitos
mínimos de sua própria existência.
Sem esses pré-requisitos,
o Estado simplesmente deixaria de cumprir suas funções.
O propósito dessas medidas não é a
promoção do bem-estar geral, senão a garantia de condições no quadro
das quais o Estado será capaz de executar sua principal função, qual seja a de
organizar a dominação de classe.
O Estado desempenha as funções
de "utilidade geral" apenas e tão somente se são
indispensáveis para a efetuação de suas tarefas de classe.
Um dos trunfos de Hans
Kelsen é o de que seria concebível um Estado que, em vez de
provomer a exploração, impulsionaria ações propriamente contra a exploração.
Em relação a isso, Kelsen
teve a oportunidade de destacar o exemplo marcante do Estado Soviético.
Porém, mesmo nesse caso,
a miséria das construções lógicas de Kelsen resulta demonstrada, de
modo inteiramente vivo.
O Estado Soviético
luta contra as tendências exploradoras da classe capitalista, desprovida
de sua posição de dominação pela Revolução Proletária de Outubro, porém
ainda não foi inteiramente liquidada.
Assim, disso decorre que essa
classe ainda existe na sociedade soviética.
Ela procura explorar outras
classes, sendo que, porém, as classes que se encontram sujeitas à ameaça de uma
tal exploração mantêm em suas mãos o poder do Estado e adotam medidas contra o
seu inimigo de classe.
Esse é o Estado de um período de
transição.
O proletariado não explora ninguém.
Com efeito, o proletariado é mesmo
a classe dominante no Estado Soviético, mas o objetivo
do Estado não é nem exploração nem subjulgação escrava, i.e. esse Estado
não um Estado, no sentido marxista do termo.
O cérebro do Professor de Viena
não pode compreender o fato de que os marxistas constróem o seu conceito
de Estado não com base no princípio do normativismo
jurídico, mas sim sobre a base de uma abordagem viva, dinâmica,
sociológica de sociedade, sendo, portanto, capazes de entender o que Kelsen
fracassa em compreender.
Tal como assinalado por Lenin
:
"Sob o
capitalismo, temos um Estado no sentido próprio da palavra, i.e. uma máquina
especial para a opressão de uma classe por outra e, além disso, da maioria
pela minoria.
Mais uma vez, durante a
transição do capitalismo ao
comunismo, resulta ser ainda
necessária a opressão.
Porém, trata-se aqui da
opressão de uma minoria de exploradores pela maioria dos explorados.
Um aparato especial
- uma máquina especial de opressão, o "Estado" - é
ainda imprenscindível, porém trata-se, agora, de um Estado de
transição. ...
Por fim, apenas o
comunismo torna o Estado absolutamente desnecessário, porque não existe ninguém
a ser oprimido - "ninguém, no sentido de classe."[11]
Kelsen fica inteiramente estupefato com o
tratamento que o marxismo confere ao problema da sociedade e do Estado.
Na sua opinião, o marxismo opõe a
sociedade ao Estado, uma ao outro, tal como o bem ao mal, o altruísmo
ao egoísmo, o interesse geral ao interesse individual.
Senão, vejamos
:
"O Estado torna-se
aí uma expressão do princípio imoral, de um interesse egoístico, ao passo que a
sociedade surge como uma expressão da solidariedade moral de cada um.
O Estado - a civitas diaboli - haveria, assim,
de ser conquistado, "perecer", renunciar em favor de uma sociedade
sem classes, livre do Estado, em favor de algo como a civitas dei.
Estritamente falando, a
única diferença existente entre o conceito de Santo Agostinho e a teoria marxista reside no fato de que Agostinho refere, de modo
inteiramente prudente, seu ideal relativamente ao outro mundo, enquanto o
marxismo aplica, mediante a aplicação da lei causal do desenvolvimento, o seu
próprio ideal ao mundo terreno."[12]
Afirmamos, anteriormente, que Kelsen
simplesmente fracassa em compreender a teoria marxista da sociedade e do
Estado.
Devemos, agora, justificar essa
assertiva.
Kelsen é um representante clássico do
tipo de juristas para o qual - tal como destacado por Engels - a forma
do Direito é tudo e o conteúdo econômico não é nada.
Em virtude de suas
calculações jurídicas, Kelsen entende e interpreta
erroneamente a abordagem marxista do problema da sociedade e do Estado,
abordagem essa baseada em dinâmicas sociológicas.
Do ponto de vista kelseniano, o
marxismo contraporia duas categorias independentes, duas formas de vida
social humana : a sociedade e o Estado.
Segundo Marx, não
existiria coerção, escravidão e exploração na sociedade.
A sociedade seria um paraíso, um
paraíso que foi perdido, mas que deve readquirido.
Já o Estado seria
um abrigo de repressão, opressão e exploração, tal como um inferno,
um inferno em que vive a humanidade.
Tudo isso soa bem, porém não
está "em consonância com Marx".
Está "em consonância com
Agostinho".
De acordo com Marx, a
sociedade e o Estado não são absolutamente categorias opostas, uma à outra.
O Estado nada é senão uma forma de
existência da sociedade, uma forma determinada por relações econômicas.
É, pois, um "produto da
sociedade, em um certo nível de desenvolvimento", tal
como Engels declara.
Em um certo estágio de
desenvolvimento da sociedade humana, a economia forçou a sociedade a assumir a
forma de um Estado, enquanto que, nos estágios subseqüentes de desenvolvimento,
a economia há de forçar a sociedade a se livrar do Estado.
O grande mérito de Marx e
Engels reside precisamente no fato de que deixaram de contemplar o
Estado como se fosse uma certa norma eterna.
Transformaram o Estado de
categoria lógica em categoria história.
Não contrapuseram o Estado à
sociedade, mas sim subordinaram-na à dialética do desenvolvimento social.
Max Adler estava inteiramente
correto, ao destacar em sua polêmica, travada contra Kelsen, que,
além destruir o fetichismo da mercadoria, Marx despedaçou também
o fetichismo do Estado.
Kelsen poderia ter visto isso por si
mesmo, se tivesse considerado cuidadosamente o seguinte famoso excerto, aqui
inserido a partir da obra de Engels :
"Portanto, O
Estado não existiu sempre. Houve sociedades que passaram sem ele
e não possuíram a menor noção nem de Estado nem de poder do
Estado.
Em um certo grau de
desenvolvimento econômico, ligado necessariamente à divisão da sociedade
em classes, o Estado tornou-se uma necessidade, em decorrência dessa divisão.
Na atualidade,
aproximamo-nos, a passos rápidos, de um desenvolvimento da produção, em
que a existência das classes não apenas deixou de ser uma
necessidade, como se torna também um entrave objetivo à
produção.
As classes irão
desaparecer tão inevitavelmente quanto antes apareceram. Com
elas, desaparecerá o Estado, de modo inelutável. A sociedade,
reorganizando a produção sobre a base da associação livre e igual dos
produtores, remeterá toda a máquina do Estado para aquele lugar que lhe
será de conveniência : o museu das antigüidades, ao lado da roda de
fiar e do machado de bronze."[13]
Além disso, destaca Engels,
de modo agudo :
"No Estado,
apresenta-se-nos o primeiro poder ideológico sobre o homem.
A sociedade cria para
si mesma um órgão de preservação de seus interesses comuns em face de
ataques internos e externos. Esse órgão é o poder do Estado.
Logo depois de surgir,
esse órgão autonomiza-se em relação à sociedade e, em verdade, tanto mais
o faz quanto mais se torna um órgão de uma determinada classe que
impõe diretamente a sua dominação de classe.
A luta dos oprimidos
contra a classe dominante torna-se necessariamente uma luta política, uma luta,
de início, contra a dominação política dessa classe.
A consciência da
conexão existente entre essa luta política e seu substrato econômico
torna-se obscura e pode desaparecer inteiramente.
Enquanto que
isso ocorre quase sempre para os historiadores, para os
participantes não é esse totalmente o caso.
Dentre as velhas fontes
sobre as lutas, travadas no interior da República Romana, apenas Apiano diz-nos, clara e nitidamente, do que se tratava no
final das contas – nomeadamente da propriedade fundiária.
Porém, o Estado, uma
vez se tornando um poder autônomo em face da sociedade, produz, de imediato,
uma ideologia adicional.
Propriamente
entre os políticos profissionais, os teóricos do Direito do Estado e os juristas do Direito Privado desaparece, sobretudo e completamente, a
conexão existente com os fatos econômicos.
Devido ao fato de deverem
os fatos econômicos assumir, em cada caso individual, a forma de motivos
jurídicos, para serem sancionados em forma legal e porque, nisso, há também
de se considerar evidentemente o conjunto do sistema de Direito já em
vigor, deve a forma jurídica, então, por esse motivo, tudo significar e o
conteúdo econômico, nada.
O Direito do Estado e o Direito
Privado são tratados como domínios autônomos que possuem seu próprio
desenvolvimento histórico independente, domínios esses que, em si mesmos, são
capazes e necessitam de uma representação sistemática, obtida mediante a erradicação
conseqüente de todas as contradições internas."[14]
Se Kelsen tivesse
compreendido a teoria marxista da sociedade e do Estado, haveria de saber que é
inadmissível traçar uma linha demarcatória entre esses dois conceitos.
Nesse caso, não teria
interpretado a teoria de Marx, em um modo semelhante a
como interpreta Santo Agostinho.
Os críticos do marxismo estão
constantemente descobrindo contradições em nosso sistema.
Agora, nele descobriram tantas
contradições quanto o número de cabelos que Marx
possuía em sua barba.
Assim, seria até mesmo estranho se
um crítico tão conceituado quanto Kelsen não agarasse
também uma das tantas contradições, existentes em Marx.
Com efeito, Kelsen
procura demonstrar uma "contradição", supostamente existente
entre as teorias política e econômica de Marx.
Na medida em que Kelsen
dedicou um espaço central em seu livro à revelação dessa contradição, devemos
de discutir, a seguir, esse problema.
O raciocínio de Kelsen
parte do fato - para ele crucial - de que os objetivos últimos tanto
do marxismo quanto do anarquismo coincidem.
No passado, já tivemos ocasião de
ler um bom número de páginas sobre um pretendido anarquismo de Marx,
já que nossos oponentes acharam por bem empreender uma
profunda investigação relativamente a esse domínio.
Kelsen também proclama que :
" ... em
princípio, inexiste qualquer diferença entre o anarquismo e a concepção de
socialismo de Marx e Engels."[15]
Marxismo e anarquismo seriam,
assim, parentes por consangüinidade, visto que ambos lutam por uma
sociedade sem classes, por uma sociedade livre, desprovida de autoridade e
coerção.
O comunismo, em favor do qual lutou
a Internacional, sob a direção de Marx e Engels,
seria, com efeito, uma forma genuína de anarquismo.
Porém, quando Marx e Engels
combateram Mikhail Bakunin, denunciaram-no, precisamente,
por exigir uma abolição instantânea do Estado, bem
como a substituição deste pela anaquia.
Por outro lado, denunciaram
Bakunin, porque sua política rumo à substituição do Estado
existente por uma organização anárquica, muito semelhante a um Estado.
Assim, Bakunin foi repudiado,
não porque fosse um anarquista, senão porque seu anarquismo não era suficientemente
conseqüente.
Kelsen sustenta que a luta, travada
entre Marx e Bakunin, teria sido motivada
por considerações de ordem pessoal.
As visões de mundo de Marx
e Bakunin seriam, porém, essencialmente similares :
"Em sua teoria
política, Marx era
um anarquista, ao passo que Bakunin
era um marxista, em sua teoria econômica."[16]
A idéia de Bakunin
concernente ao Estado revolucionário e a idéia de Marx e
Engels de Ditadura do Proletariado seriam, assim, tão similares quanto
duas gotas de água.
Opunham-se uma à
outra apenas em virtude do diferente fervor político que possuíam os
seus oponentes políticos.
Os aspectos ecômicos e políticos do
pensamento de Marx não possuiríam nada em comum ou, mais
precisamente, estariam isolados um do outro.
A teoria econômica de Marx
conduziria a uma estrita organização econômica, centralizada
coletivisticamente, enquanto que sua doutrina política propugnaria, de modo
inteiramente claro, em favor de um ideal anarco-individualista.
Essas seriam, segundo Kelsen,
as fatais contradições do marxismo.
Kelsen alega que os seres humanos
não podem dominar a natureza, sem dominar a si mesmos, i.e. sem se subordinarem
a uma organização social.
Essa subordinação não seria,
evidentemente, equivalente à exploração e escravismo.
Kelsen clama por uma resposta para a
seguinte questão :
"É possível guiar massas
enormes de pessoas - vale dizer, a humanidade - rumo ao atingimento de certos
objetivos, sem recorrer à coerção externa?"
A resposta positiva conferida a
essa questão pode ser dada apenas no caso de admitirmos que, devido
à supressão da propriedade privada e à subseqüente liquidação das
classes, a sociedade do futuro será uma sociedade solidária, sem
contradições materiais, uma sociedade na qual terão lugar apenas
inofensivas diferenças de opiniões.
Tão somente em um caso como
esse, os seres humanos subordinar-se-ão voluntariamente à ordem
social, pois, então, os órgãos da sociedade hão de lhes ordenar que
façam apenas aquilo que desejem fazer.
Esse é o único caso que justifica a
suposição de que as relações dos seres humanos para com a sociedade, para com
os órgãos sociais, deixarão de constituir relações baseadas na
dominação, tornando-se relações travadas entre seres humanos iguais, relações
determinadas por vontades iguais dos companheiros que edificam a sociedade.
Esse caso singular é afirmado pelo
anarquismo.
A mesma hipótese situa-se na
base da concepção de Engels de que o governo das pessoas será
substituído pela administração das coisas.
Contudo, em consonância com Kelsen,
essa hipótese nada é senão uma quimera, uma utopia.
É inteiramente possível que o
comunismo instaure uma sociedade com tais vantagens econômicas óbvias que
nenhuma oposição séria ao comunismo sejá imaginável.
Porém, o comunismo não
meramente uma ordem econômica.
É, outrossim, uma organização
cultural, abarcando todos os aspectos da vida social.
O comunismo há de
regular problemas de religião, arte, relações sexuais e tudo isso
conduzirá a grandes conflitos.
Mesmo que, na futura
sociedade, a solidariedade econômica seja atingida, é evidente que essa
solidariedade não cobrirá todos os aspectos da vida social.
Essa hipótese é inteiramente
admitida apenas pelos marxistas, que, sob a influência de uma
sobrevalorização dos fatores econômicos, elucidam os significativos
eventos históricos mormente a partir das relações de
produção.
Citando ipsis litteris
o posicionamento de Kelsen acerca do tema, temos, porém, que :
"Corresponde a uma estreiteza
de visão sem precedentes admitir que, na futura sociedade, existirá apenas
a oposição entre resmungadores individuais, que os problemas de religião,
arte e relações sexuais não conduzirão à criação de grupos distintos....
Os grupos que se
encontrarão a si mesmos em oposição ao sistema da sociedade comunista haverão
de ser "reprimidos" da mesma maneira como o proletariado está sendo
presentemente reprimido.
Conseqüentemente, é
questionável se considerarão a sociedade comunista como sendo uma sociedade
solidária.
Muito mais do que isso,
hão de a considerar como uma ordem coercitiva, como um aparato de opressão,
como um "Estado".
Sua atitude será
similar àquela da sociologia "proletária" atual em face da sociedade
capitalista e seu sistema, baseados na coerção."[17]
O marxismo sonharia,
assim, com a substituição do Estado classista pela sociedade sem
classes, porém esquecer-se-ia que uma solidariedade, uma sociedade
fraternal seria inimaginável, considerando-se a natureza existente do ser
humano.
Seria, assim, inteiramente
possível que não seja o capitalismo que corrompa o ser humano, transformando-o
em um criminoso, senão, pelo contrário, que o capitalismo exista em virtude de
seu sistema de exploração corresponder à natureza humana :
"O ser
humano possui um forte instinto para fazer com outros trabalhem por ele e, em
geral, para usar outras pessoas como meios, destinados ao atingimento de seus
próprios objetivos."[18]
Portanto, a exploração seria um
instinto humano, tal qual a pregüiça, o roubo, o ciúme, a honestidade.
Dest'arte, também a sociedade
comunista terá de se arranjar com todos esses instintos.
Pois, também o sistema da sociedade
comunista será baseado na coerção.
Nada será senão uma "Zwangsordnung
(ordem coercitiva)", um Estado.
O marxismo estará, assim, forçado a
edificar a sociedade futura, lançando mão do material humano a partir do qual
foram criados os Estados contemporâneos.
O que tornaria utópicos todos
os sonhos marxistas, relacionados com uma futura sociedade ...
Procurei apresentar ao leitor
as concepções de Kelsen acerca da questão das "contradições"
de Marx tão acuradamente quanto possível.
Devo admitir que fiz isso não
somente por estar lidando com um oponente, cujas concepções estão sujeitas à
crítica, senão principalmente porque a exposição dos pontos de vistas
kelsenianos constitui, por si mesma, a melhor crítica que se possa
desfechar contra Kelsen.
Agora, devemos tentar
obter uma visão mais aproximada dos argumentos de Kelsen.
Em primeiríssimo lugar, cumpre-nos
discutir o suposto problema da "relação de
consangüineidade", existente entre o marxismo e o anarquismo, o
qual levou Kelsen a falar do anarquismo de Marx e
do marxismo de Bakunin.
No que tange a Bakunin,
não nos surpreende que Kelsen o descreva como um
"marxista".
Já tivemos ampla oportunidade de
ver quão pobre e distorcido é a interpretação kelseniana do marxismo.
Uma tal especialista em marxismo,
como o Professor Kelsen, é capaz, facilmente, de
reconhecer o conceito econômico de história de Bakunin como
sendo "marxismo" bona fide (EvM.
"marxismo" de boa fé).
Certa vez, Georgy Plekhanov
carecterizou Bakunin como sendo um "proudhonista,
esclarecido pelo marxismo".
Porém, Kelsen deveria
saber que ser "esclarecido pelo marxismo" não o
mesmo que ser um marxista.
Em conformidade com a decisiva
asserção de Kelsen em foco, Karl Marx, inimigo
jurado da doutrina anarquista, inimigo que jamais deixou de
lutar contra todas as variedade de anarquismo, seria :
"... um
anarquista, em sua teoria política."[19]
Enfoquemos de mais perto tanto o
marxismo como o anarquismo :
1. O marxismo rejeita a máquina de
Estado existente, sendo que o anarquismo também o faz ;
2. O marxismo estabelece que o
curso histórico conduz à criação da sociedade sem classes, sendo que o
anarquismo igualmente aspira à criação de uma sociedade sem
classes.
Podem os pontos indicados de
contigüidade (ou, até mesmo, de coincidência), existentes entre o marxismo
e o anarquismo, justificar já a segunte conclusão : marxismo é o
mesmo que anarquismo ?
O professor Hans Kelsen
diz que sim.
Em contraste a essa sua conclusão,
gostaríamos de propor a seguinte fórmula : marxismo não é
absolutamente anarquismo.
Em uma carta, dirigida a Theodor
Cuno, datada de 24 de janeiro de 1872, Friedrich Engels
demonstrou, de modo inteiramente claro, a distinção existente entre o
"anarquismo" de Marx e a teoria do anarquismo,
desenvolvida por Bakunin :
"Bakunin, que, até 1868, havia promovido
intrigas contra a Internacional, aderiu a ela, depois de ter sofrido um fiasco,
na Conferência de Paz de Berna e, imediatamente, começou a nela conspirar contra o seu Conselho
Geral.
Bakunin possui uma teoria
particularíssima, um potpourri de prodhonismo e comunismo, cujo ponto
central é, em primeiro lugar, o de que não concebe o capital e, portanto,
a contradição de classe, existente entre capitalistas e assalariados,
surgida mediante o desenvolvimento econômico, enquanto o mal
principal a ser suprimido.
Pelo contrário, entrevê
no Estado o mal principal.
Enquanto a grande massa
dos trabalhadores sociais-democratas sustenta o nosso ponto de vista de
que o poder do Estado nada mais é do que a organização com a qual as
classes dominantes, os proprietários fundiários e os capitalistas,
apetrecharam-se, a fim de proteger suas prerrogativas, Bakunin propugna que é o Estado que criou o capital, que o capitalista detém o
capital apenas graças ao Estado.
Na medida em que,
portanto, o Estado é o principal dos males, deve-se, sobretudo, eliminar o
Estado.
Então, o capitalismo
irá para o inferno por si mesmo.
Nós, pelo contrário,
dizemos : suprimamos o capital, a apropriação de todos os meios de produção,
situada nas mãos de poucos, e o Estado decairá por si mesmo.
A diferença é, pois,
essencial.
Sem uma revolução
social prévia, a abolição do Estado é um absurdo.
A abolição do capital
é, em si mesma, a revolução social e involve uma mudança em todo o método
de produção.
Porém, além disso, uma
vez que para Bakunin é o Estado o
mal principal, nada cumpre ser feito que possa vir a manter a existência
de Estado algum, seja ele uma república, seja ele uma monarquia ou seja lá o
que for.
Assim,
portanto : completa
abstenção de todas as questões políticas.
Cometer uma ação
política - e, especialmente, participar de uma eleição - nada
mais seria senão uma traição ao princípio.
O que cumpriria
executar seria fazer propaganda, abusar do Estado, organizar e,
quando todos os
trabalhadores fossem conquistados, i.e. quando se tornassem
a maioria, deporiam as autoridades, suprimiriam
o Estado, substituindo-o pela organização da Internacional.
O grande ato com o qual
se iniciaria o milênio é chamado "liquidação social"."[20]
A brochura de Lenin,
intitulada "Estado e Revolução", encontrava-se
disponível para a leitura de Kelsen.[21]
Caso Kelsen a tivesse
estudado, teria descoberto que a diferença, existente entre os
marxistas e os anarquistas, corresponde ao seguinte :
1. Os marxistas lutam pela completa
destruição do Estado e afirmam que esse objetivo é alcançável, apenas
depois da destruição das classes, por meio de uma revolução, enquanto
resultado da instituição do socialismo, conducente ao perecimento do Estado. Os
anarquistas insistem na destruição repentina do Estado. Não conseguem conceber
as condições necessárias para a realização de uma tal destruição ;
2. Os marxistas asseveram que o
proletariado tem de conquistar o poder de mando político, destruir
completamente a velha máquina estatal, substituindo-a por uma nova, por uma
organização de trabalhadores armados, por uma organição semelhante à Comuna.
Ao insistirem na destruição repentina da máquina do Estado, os anarquistas não
possuem a mínima idéia do que o proletariado deve colocar no lugar da
máquina destruída nem de como o proletariado utilizará o poder do Estado,
de modo revolucionário. Os anarquistas rejeitam, até mesmo, a utilização
do poder do Estado pelo proletariado revolucionário. Rejeitam, portanto, a Ditadura Revolucionária
do Proletariado ;
3. Os marxistas clamam pela
preparação do proletariado para a revolução, mediante a utilização do
Estado contemporâneo, ao passo que os anarquistas rejeitam essa teoria. Os
anarquistas clamam pela "abolição" do Estado, acreditando que a
destruição do Estado pode ser realizada por meio de decreto.
De acordo com o marxismo, a
destruição do Estado pode apenas ocorrer enquanto resultado de
uma complexo processo histórico.
Esse processo é constituído por
duas fases inevitáveis, indissoluvelmente conectadas uma à outra :
1. A primeira fase é a substituição
da burguesia, do Estado capitalista, pelo Estado proletário, o Estado de tipo
transitório, nascido no fogo e na tempestade da Revolução ;
2. A segunda fase é a substituição
do Estado proletário pela sociedade sem classes, que emergerá da perda
gradual das funções do Estado, do "perecimento" do Estado.
Eis a tremenda distinção - e também
a principal distinção -, existente entre o marxismo e o anarquismo.
Aquele que não consegue entender
isso, não sabe praticamente nada sobre marxismo e anarquismo.
De acordo com Kelsen, Marx,
além de ser um "anarquista", é, igualmente, um "utopista".
Mas, onde é que o Professor Hans
Kelsen encontrou "utopia" no fundador do
socialismo científico ?
Encontrou-a na fé que Marx possui
no advento da sociedade futura, sociedade, em que o governo das
pessoas será substituído pela administração das coisas, sociedade sem
escravismo e opressão.
Na realidade, seria estranho se um crítico tão zeloso não
mencionasse o "utopismo" da teoria de Marx,
relativo à construção da futura sociedade.
Esse "utopismo" é, portanto, um
alvo, perseguido por muitos seguidores do Professor Hans Kelsen.
Ao esclarecer o significado da "utopia"
marxista da sociedade do futuro, Kelsen alega
que o marxismo seria :
" ... uma teoria
social cega que tudo vê em meio à escuridão das questões
econômicas."[22]
Segundo Kelsen, a "utopia"
marxista seria incapaz de contemplar o fato de que a existência da
futura sociedade será determinada não pela economia, senão pela
psicologia.
Antes de mais nada, gostaríamos de realçar o fato de
que o professor extremamente lógico, Hans Kelsen, desenvolve
um argumento que viola algumas regras da lógica. Senão vejamos :
1. Se o marxismo é "cego", como
poderia, então, ver alguma coisa, seja mesmo "em meio à escuridão das
questões econômicas ?
2. O Professor Hans Kelsen equivoca-se
quando acredita que os marxistas são inteiramente ignorantes em questões
atinentes à psicologia. Deveria ter passado em revista, p.ex., a obra do Professor
Georgy I. Tchelpanov, intitulada "Psicologia e
Marxismo" .[23]
Por que é, então, que a psicologia kelseniana fornece uma
resposta negativa à questão relativa à possibilidade de existência de
uma sociedade sem classes que há de substituir o Estado, após o
perecimento deste ?
Já apresentamos, anteriormente, os argumentos de Kelsen
acerca desse ponto : exploração, pregüiça, roubo etc. são instintos humanos,
inerentes à nossa própria natureza. Enquanto formos impotentes para
modificar essa natureza, não podemos nem sequer pensar em uma nova sociedade. A
natureza humana torna uma organização estatal inelutável e todos os sonhos
acerca de seu perecimento nada são senão utopia.
A concepção defendida por Kelsen é, com
efeito, constitui o seu próprio "testimonium pauperitatis (EvM.:
atestado de probreza)" ...
O professor em destaque afirma que a exploração é congênita à natureza
do ser humano.
Exatamente, o mesmo argumento foi esgrimido por Kelsens
precedentes que viveram na Antigüidade, ao sustentarem
que a escravidão seria congênita à natureza humana. A
seguir, a mesma asserção foi levantada por senhores
feudais, opressores servos da gleba, ao defenderem o seu Direito de
explorar camponeses.
Em nosso país, até mesmo um estudante de escola primária
poderia, com tato, explicar a Kelsen que
ninguém é explorador e ninguém é explorado, por causa de
sua própria natureza, que ninguém rouba, por causa de sua própria
natureza, senão por força das condições sociais existentes. Com as
mudanças das condições sociais, esses "instintos" que
constituem a ultima ratio (EvM.: a derradeira razão) da
crítica anti-marxista de Kelsen irão, efetivamente, desaparecer.
Sabemos - não sonhamos - que tais condições sociais estão
mudando. Disso estamos conscientes, por fundarmo-nos em uma firme
convicção que apenas o conhecimento científico do processo social é
capaz de nos prover. Em verdade, temos ciência de que essas
condições não se modificam, instantaneamente. Portanto, os seres humanos
não se modificarão, repentinamente :
"Não somos
utopistas. Não sonhamos com uma eliminação instantânea de todo governo, de toda
a subordinação. Existem sonhos anarquistas, fundados na incapacidade de
conceber as tarefas da Ditadura do Proletariado. Esses sonhos são completamente
alheios ao marxismo e, de fato, aspirão ao postergamento da revolução
socialista. ... "[24]
O caminho rumo à sociedade do futuro é longo. Está
claro que será longo e doloroso, porém sabemos que direção há de
percorrer. Não podemos prever "o objetivo último", porque será
determinado pelo próprio desenvolvimento social.
Tal como declarado pelo "Manifesto
Comunista" :
"Quando as
diferenças de classes desaparecerem, no curso do desenvolvimento, e toda a
produção concentrar-se nas mãos dos indivíduos associados, perderá o poder
público, então, o seu caráter político. O poder político é, em sentido
estrito, o poder organizado de uma classe para a opressão de outra.
Unificando-se necessariamente
enquanto classe o proletariado, na luta contra a
burguesia, tornando-se ele, através de uma revolução, classe dominante
e suprimindo, violentamente, enquanto classe dominante, as velhas
relações de produção, abole, juntamente com essas relações de produção, as
condições de existência do antagonismo de classes, bem como as classes, em
geral, e, com isso, sua própria dominação, enquanto classe. No lugar da
velha sociedade burguesa, dotada de suas classes e contradições de
classes, surgirá uma associação, na qual o livre desenvolvimento de cada
ser humano será a condição do livre desenvolvimento de todos."[25]
Depois de destruir o socialismo marxista odioso, Hans
Kelsen estende, magnanimamente, seus braços em direção ao inimigo
derrotado e concede-lhe um conselho de salvação de sua vida : o socialismo
será salvo, se, em vez de ser orientado por Marx, for
orientado por Lassalle :
"Zurück zu Lassalle ! (EvM. Voltemos a
Lassalle !)", exclama, triunfantemente, Hans
Kelsen.
Tal como Hermann Oncken, Bernhard
Harms e Lev Novgorodtsev, Kelsen conclama
a classe trabalhadora a descartar a grande e imortal contribuição de Marx,
o mestre da atividade revolucionária.[26]
Kelsen favorece aquela parte do legado de Lassalle
que Marx estigmatiza como "a fé leal no
Estado da seita de Lassalle".
Kelsen louva concepção política de Lassalle,
o qual, em contraste com Marx, sustentou que o Estado não é
um instrumento da luta de classes, fervilhando no útero da sociedade,
mas sim uma certa entidade moral que se situa acima da sociedade, um "fogo
sagrado e eterno da civilização".[27]
Apresentamos, aqui, apenas certos posicionamentos de Hans
Kelsen, desenvolvidos contra a teoria do Estado de Karl
Marx.
Concluiremos dizendo que as concepções de Kelsen
são movediças e débeis.
Criticando-as, tornamo-nos convictos de que esse
cientista, um dos líderes dos ataques modernos, desferidos contra Marx,
no domínio da teoria do Estado, requenta a velha papa
"crítica" de sempre, temperando-a com uma fraseologia normativa e um
escolasticismo jurídico-formal.
Em vez de análise do marxismo acerca do processo social, Kelsen
ofere aos seus leitores um esquema sem vida de Ciência do
Direito essencialmente formalista.
EDITORA
DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES
“UNIVERSIDADE
COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”
PARA A FORMAÇÃO,
ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA
DO
PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS
MOSCOU -
SÃO PAULO – MUNIQUE - PARIS
[1] Cf. VOLFSON,
SERGUEI. Sovremennie Kritiki Marksisma (Crítica Contemporânea do Marxismo),
in : Pod Znamenem Marksisma (Sob a Bandeira do Marxismo), Moscou : Gosud.
Izd-vo, Nr. 8/9, 1924, pp. 246 e s.
[2] Cf. LENIN, VLADIMIR ILITCH. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou : Gosud. Izd-vo, 1989, p. 5.
[3] Sobre os autores referidos, vide sobretudo
KELSEN, HANS. Sozialismus und Staat.
Eine Untersuchung der politischen Theorie des Marxismus (Estado e
Socialismo. Uma Investigação da Teoria Política do Marxismo)(1920), Leipzig :
Hirschfeld, 1923, pp. I e s. ; IDEM.
The Communist Theory of Law, London : Stevens. The Library of World Affairs,
1955, pp. 7 e s.; IDEM. La
Teoria Generale del Diritto e il Materialismo Storico, Roma : Ist. della
Enciclopedia Italiana, 1979, pp. 3 e s.; LENZ, FRIEDRICH. Staat und Marxismus (1922-1924), Vol. 1
(1922) : Fundamento e Crítica da Doutrina Marxista da História, Vol. 2
(1924) : A Social-Democracia Alemã, Aalen : Scientia Verlag, 1980,
pp. 5 e s.
[4] Acerca de Cunow e Sultan, vide, especialmente, CUNOW, HEINRICH. Die Marxsche
Geschichts-, Gesellschafts- und Staatstheorie (A Teoria Marxista da História,
da Sociedade e do Estado), Vols. 1 e 2, Berlim : Vorwärts, 1920 e 1921, pp. 11
e s. Sobre SULTAN, HERBERT. Gesellschaft
und Staat bei Karl Marx und Friedrich Engels. Ein Beitrag zum
Sozialisierungsproblem (Sociedade e Estado em Karl Marx e Friedrich
Engels. Uma Contribuição ao Problema de Socialização), Jena : Fischer, 1922,
pp. 7 e s.
[5] Sobre os autores em destaque, vide, em
particular, KAUTSKY, KARL. Die
Marxsche Staatsuffassung im Spiegelbild eines Marxisten beleuchtet (A Concepção
Marxista do Estado Ilustrada com a Imagem Refletida de um Marxista), Jena :
Thüringer Verlanganst., 1923, pp. 3 e s. ; IDEM.
Der neue Staat. Demokratie oder Diktatur? (O novo Estado. Democracia ou
Ditadura?), Berlin : Verl. d. Weißen Blätter, 1920, pp. 7 e s.; IDEM. Von der Demokratie zur
Staatssklaverei. Eine Auseinandersetzung mit Trotzki (Da Democracia à
Escravidão Estatal. Uma Polêmica com Trotsky), Berlim : Freiheit, 1921, pp. 7 e
s.; IDEM. Demokratie oder
Diktatur (Democracia ou Ditadura), Berlim : Cassirer, 1918, pp. 3 e s.; IDEM. Die Diktatur des Proletariats (A
Ditadura do Proletariado), Viena : Ignaz Brand & Co, 1918, pp. 5 e s.; IDEM. Was will die deutsche
sozialistische Republik? (O Que Quer a República Socialista Alemã), 1918,
Berlim : Cassirer, pp. 5 e s.; IDEM.
Kriegsmarxismus (Marxismo de Guerra), Viena : Ignaz Brand & Co.,
1918, pp. 5 e s.; IDEM. Terrorismus
und Kommunismus. Ein Beitrag zur Naturgeschichte der Revolution (Terrorismo e
Comunismo. Uma Contribuição à História Natural da Revolução), Berlim : Neues
Vaterland, 1919, pp. 3 e s.; IDEM. Der
lebendige Marxismus (O Marxismo Vivo), Jena : Thüringer Verl.-Anst., 1924, pp.
3 e s.; ADLER, MAX. Die
Bedeutung des Sozialismus (O Significado do Socialismo), Viena : Ignaz Brand
& Co., 1917, pp. 3 e s.; IDEM.
Kant und der Marxismus. Gesamte Aufsätze zur Erkenntniskritik und Theorie des
Sozialen (Kant e o Marxismo. Ensaios Reunidos sobre a Crítica do
Conhecimento e a Teoria do Social), Berlim : Laub, 1925, pp. III e s.; IDEM. Lehrbuch der
materialistischen Geschichtsauffassung (Manual sobre a Concepção Materialista
da História), Berlim : Laub, Vol. 1 : 1930, Vol. 2 : 1932, pp. 3 e s.; IDEM. Schöpferischer Sozialismus
(O Socialismo Criativo), Viena : Volksbuchhandlung, 1932, pp. 1 e s.
[6] Nesse sentido, vide KELSEN, HANS. Sozialismus und Staat.
Eine Untersuchung der politischen Theorie des Marxismus (Estado e
Socialismo. Uma Investigação da Teoria Política do Marxismo)(1920), Leipzig :
Hirschfeld, 1923, pp. I e s.
[7] Cf. KELSEN, HANS. Hauptprobleme der Staatsrechtslehre entwickelt aus
der Lehre vom Rechtssatze (Principais Problemas da Doutrina do Direito do
Estado Desenvolvidos A Partir da Doutrina da Proposição Jurídica), Tübingen :
Mohr, 1910, p. 93.
[8] Cf. KELSEN, HANS. Sozialismus und Staat. Eine Untersuchung der
politischen Theorie des Marxismus (Estado e Socialismo. Uma Investigação
da Teoria Política do Marxismo)(1920), Leipzig : Hirschfeld, 1923, pp. II.
[9] Cf. IDEM. ibidem, p. 11.
[10] Cf. IDEM.
ibidem, p. 13.
[11] Cf. LENIN, VLADIMIR ILITCH. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução)(1917), Capítulo V : A Base Econômica do Perecimento do Estado, Nr. 2: A Transição do Capitalismo ao Comunismo, Moscou : Gosud. Izd-vo, 1989, pp. 121 e s.
[12] Cf. KELSEN, HANS. Sozialismus und Staat. Eine Untersuchung der
politischen Theorie des Marxismus (Estado e Socialismo. Uma Investigação
da Teoria Política do Marxismo)(1920), Leipzig : Hirschfeld,
1923, pp. 31 e s.
[13] Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Ursprung der Familie, des Privateingentums und
des Staats (Sobre a Origem da Família, da Propriedade Privada e do
Estado)(Março - Maio de 1884), Capítulo IX : Barbárie e
Civilização, in: Karl Marx & Friedrich Engels Werke (Obras de
Marx e Engels), Vol. 21, Berlim : Dietz,
1961, p. 167.
[14] Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Ludwig Feuerbach und der Ausgang der deutschen
klassischen Philosophie (Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica
Alemã)(Início de 1886), Vol. 21, Capítulo IV, in: ibidem, p. 302.
[15] Cf. KELSEN, HANS. Sozialismus und Staat. Eine Untersuchung der
politischen Theorie des Marxismus (Estado e Socialismo. Uma Investigação
da Teoria Política do Marxismo)(1920), Leipzig : Hirschfeld,
1923, p. 85.
[16] Cf. IDEM. ibidem, p. 85.
[17] Cf. IDEM. ibidem, p. 108.
[18] Cf. IDEM. ibidem, p. 108.
[19] Cf. IDEM. ibidem, p. 85. Uma visão semelhante foi sustentada por
um socialista cristão, de nome Fritz
Eberstein. Nesse sentido, Kelsen
encontra-se, com efeito, magnificamente acompanhado. Sobre o socialismo
cristão de EBERSTEIN, FRITZ.
Die Organisation bei Karl Marx (A Organização em Karl Marx), Essen a.d. Ruhr :
Baedecker, 1921, pp. III e s.
[20] Cf. ENGELS, FRIEDRICH. Brief an Theodor Cuno (Carta a Theodor Cuno)(24 de Janeiro de 1872), in : Friedrich Engels. Politisches Vermächtnis - Aus unveröffentlichen Briefen (Friedrich Engels. Legado Político -Extraído de Cartas Não Publicadas, Berlim : Jugendinternationale, 1920, p. 13.
[21] Vide, mais detalhadamente, LENIN, VLADIMIR ILITCH. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução) (1917), Moscou : Gosud. Izd-vo, 1989, pp. 3 e s.
[22] Cf. KELSEN,
HANS. Sozialismus und Staat. Eine Untersuchung der politischen Theorie des
Marxismus (Estado e Socialismo. Uma Investigação da Teoria Política do
Marxismo)(1920), Leipzig : Hirschfeld, 1923, p. 87.
[23] Acerca do tema, vide TCHELPANOV,
GEORGY IVANOVITCH. Psichologya i Marxism (Psicologia e Marxismo), Moscou :
Russky Kiniznik, 1924, pp. 5 e s.; IDEM. Psichologya ili
Refleksologya. Spornye Voprosy Psichology (Psicologia ou
Reflexologia. Questões Polêmicas da Psicologia), Moscou : Russky
Kiniznik, 1926, pp. 13 e s.
[24] Cf. LENIN,
VLADIMIR ILITCH. Gosudarstvo i Revolutsia. Utchenie Marksisma o
Gosudarstve i Zadatchi Proletariata v Revoliutsi (Estado e Revolução. A
Doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução)
(1917), Moscou : Gosud- Izdvo., 1989, p. 123.
[25] Cf. MARX,
KARL. Manifest der Kommunistischen Partei (Manifesto do Partido
Comunista)(Dezembro de 1847 - Janeiro de 1848), in : Karl Marx & Friedrich
Engels Werke (Obras de Marx e Engels), Vol. 4, Berlim : Dietz, 1961, p.
482.
[26] Nesse sentido, vide, sobretudo, ONCKEN, HERMANN. Lassalle,
Stuttgart : Frommann, 1904, pp. 3 e s. ; IDEM.
Unser Reich (Nosso Império), Heidelberg : C. Winter, 1921, pp. 1 e s.; IDEM. Politik und Kriegsführung
(Política e Direção de Guerra), Bremen : Schünemann, 1928, pp. 7 e s.; HARMS, BERNHARD. Ferdinand Lassalle und
seine Bedeutung für die deutsche Sozialdemokratie (Ferdinand Lassalle e seu
Significado para a Social-Democracia Alemã), Jena : Fischer, 1909, pp. 5 e
s.; NOVGORODTSEV, LEV V. Germania
i eio Politicheskaia Jizn (A Alemanha e sua Vida Política), São Petersburgo :
To-vo Zinanie, 1904, p. 5 e s.
[27] Acerca dos posicionamentos de Lassalle sobre o Estado, vide,
em particular, LASSALLE, FERDINAND. Über
Verfassungswesen. Rede am 16. April 1862 in Berlin (Sobre o Sistema
Constitucional. Discurso de 16 de abril de 1862, em Berlim), Hamburg : Europ.
Verl.-Anst., 1993, pp. III e s. ; IDEM. Macht
und Recht, Zürich : Meyer & Zeller, 1863, pp. 3 e s.; IDEM. Das System der erworbenen Rechte. Eine Versöhnung des
positiven Rechts und der Rechtsphilosophie (O Sistema dos Direitos
Adquiridos. Uma Conciliação do Direito Positivo e da Filosofia do
Direito)(1861), München : Verlag für Gesellschaftswissenschaft, 1880, pp. 3 e
s.