PRODUÇÕES LITERÁRIAS DEDICADAS À FORMAÇÃO

DE REVOLUCIONÁRIOS MARXISTAS QUE ATUAM NO DOMÍNIO DO DIREITO, DO ESTADO E DA JUSTIÇA DE CLASSE

 

KARL MARX E FRIEDRICH ENGELS SOBRE O DIREITO E O ESTADO, OS JURISTAS E A JUSTIÇA

 

A Ideologia Alemã. Crítica da Mais Moderna Filosofia Alemã :

 

O Apelo ao Direito dos Proletários

Como Meio de os Tornar uma Massa Unificada Revolucionária

 

KARL MARX[1]

 

Concepção e Organização, Compilação e Tradução

 Emil Asturig von München, Janeiro de 2009

 

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(...) O fato é, portanto, o seguinte : certos indivíduos que são, de determinado modo, produtivamente ativos, ingressam em determinadas relações sociais e políticas.

A observação empírica deve demonstrar, em cada caso individual, empiricamente e sem qualquer mistificação e especulação, a interdependência da formação social e política com a produção.

A formação social e o Estado procedem, permanentemente, do processo da vida de determinados indivíduos, porém desses indivíduos não como eles podem surgir em sua própria representação ou na representação alheia, mas sim como eles realmente são, i.e. tal como eles agem, produzem materialmente, i.e. tal como são, sob certas condições, pressupostos e limites materiais determinados, independentemente de seu próprio arbítrio.

A produção das idéias, das representações, da consciência encontra-se, de início, diretamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos seres humanos, a língua da vida real.

O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos seres humanos surgem, aqui, ainda, enquanto decorrência direta de seu comportamento material.

O mesmo vale para a produção espiritual, tal como se apresenta na língua da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de um povo.

Os seres humanos são os produtores de suas representações, idéias etc., porém seres humanos reais, atuantes, tal como são condicionados pelo desenvolvimento determinado de suas forças produtivas e do intercâmbio às mesmas correspondente, até o elevar-se às suas mais distantes formações.

A consciência não pode ser jamais uma outra coisa distinta do ser consciente e o ser dos homens é o seu processo real de vida.

Se, em toda a ideologia, os seres humanos e suas relações surgem de cabeça para baixo, como em uma câmara escura, decorre esse fenômeno, então, tanto de seu processo histórico de vida quanto a inversão dos objetos na retina decorre de seu processo diretamente físico.

Inteiramente em oposição à Filosofia Alemã que desce do céu para a terra, sobe-se, aqui, da terra para o céu, i.e. não se parte daquilo que os seres humanos dizem, imaginam, representam, também não se parte dos seres humanos ditos, pensados, imaginados, representados, para daí chegar-se ao seres humanos de carne e osso : parte-se do seres humanos efetivamente ativos e também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos desse processo de vida surge apresentado a partir de seu processo real de vida.

Também as imagens nebulosas no cérebro dos seres humanos são sublimações necessárias de seu processo de vida material, empiricamente constatável e conectado com pressupostos materiais.

A moral, a religião, a metafísica e as demais ideologias e as formas de consciência que lhe são correspondentes deixam de conservar, com isso, sua aparência de autonomia.

Elas não possuem nenhuma história, nenhum desenvolvimento, mas sim os seres humanos que desenvolvem sua produção material e seu intercâmbio material modificam, com esse sua realidade, também o seu pensar e os produtos de seu pensamento.

Não é a consciência que determina a vida, mas é a vida que determina a consciência.

Na primeira forma de concepção, parte-se da consciência enquanto indivíduo vivo, na segunda, da vida real e, correspondemente, dos próprios indivíduos reais vivos, concebendo-se  a consciência apenas enquanto sua consciência.  

Essa última forma de concepção não é desprovida de pressupostos. 

Ela parte dos pressupostos reais, não os abandonando em nenhum momento.

Seus pressupostos são os seres humanos, situados não em algum qualquer isolamento e fixação, mas sim em um processo de desenvolvimento real, empiricamente vivo, sob determinadas condições.

Tão logo esse processo de vida ativo é apresentado, deixa a história de ser uma coleção de fatos mortos - tal como para os próprios empiristas, ainda abstratos – ou uma ação imaginada por sujeitos imaginados – tal como para os idealistas.

Lá onde cessa a especulação na vida real, começa, então, a Ciência Positiva, Real, a apresentação da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos seres humanos.

As frases sobre a consciência cessam, devendo o saber real ingressar em seu lugar.

A Filosofia Autônoma perde, com a apresentação da realidade, seu meio existencial.

Em seu lugar, pode surgir, no máximo, um resumo dos resultados mais gerais que permite ser abtraído a partir da concepção do desenvolvimento histórico dos seres humanos.

Essas abstrações, consideradas por si mesmas, apartadas da história real, não possuem absolutamente qualquer valor.

Elas podem apenas servir para facilitar a ordenação do material histórico, para referir a seqüência de suas camadas individuais.

Não fornecem, porém, de nenhuma forma – tal como o faz a Filosofia – um receita ou um esquema, segundo o qual as épocas históricas podem ser cultivadas.

A dificuldade começa, pelo contrário, apenas no momento em que se trata de ocupar-se com a concepção e a ordenação do material, seja de uma época passada ou de uma época presente, bem como com a apresentação real.

A eliminação dessas dificuldades é condicionada por pressupostos que não podem absolutamente ser aqui fornecidos, mas que apenas resultam do estudo do processo real da vida e da ação dos indivíduos de cada época[2].

 

 

(...) O "espírito" possui, em si mesmo, desde o início, a maldição de estar "vinculado" à matéria que, aqui, surge na forma de camadas de ar, sons, em suma, na forma de língua.

A língua é tão antiga quanto a consciência.

A língua é a consciência real e prática que existe também para outros seres humanos e, portanto, apenas então, também para mim mesmo.

E, tal qual a consciência, a língua surge, inicialmente, a partir da necessidade, a partir da necessária imposição da inter-relação, mantida com outros seres humanos.      

(Assinalo que, no esboço original do texto em apreço, consta a seguinte frase eliminada : "Minha relação com o meu meio circunstante é a minha consciência.")

Onde existe uma relação, existe ela para mim. Um bicho não se "relaciona" de nenhum modo e nem se "relaciona" com alguma coisa. Para esse animal, sua relação para com outros não existe como relação.

Portanto, a consciência é, desde o início, já um produto social e permanece sendo-o, enquanto seres humanos existirem, em geral. Primeiramente, a consciência é, naturalmente, mera consciência do meio 

Portanto, a consciência é, naturalmente, de início, mera consciência acerca do meio circundante sensível mais próximo e consciência acerca da limitada interconexão com outras pessoas e coisas, situadas fora do indivíduo que se torna consciente de si mesmo. 

É, ao mesmo tempo, consciência acerca da natureza que se apresenta, inicialmente, aos seres humanos como um poder inatacável e omnipotente, inteiramente estranho, com o qual os seres humanos se relacionam de modo puramente animal, permitindo-se constranger, tal qual o gado, sendo, portanto, uma consciência puramente animal acerca da natureza (religião natural).    

Desde logo, vê-se aqui o seguinte: 

 

1. essa religião natural ou essa relação determinada para com a natureza é condicionada pela forma social e vice-versa. Aqui, assim como por todos os lados, a identidade, havida entre natureza e ser humano emerge também de tal modo que a limitada relação dos seres humanos para com a natureza condiciona sua limitada relação para com os demais e esta condiciona aquela, precisamente porque a natureza ainda mal foi historicamente modificada. ;   

 

2. e, por outro lado, a consciência acerca da necessidade de ingressar em contato com os indivíduos circunjacentes é o início da consciência acerca do fato de que se vive, efetivamente, em uma sociedade.  

Esse início é tão bestial quanto a vida social esse estágio mesmo. Existe meramente consciência gregária e o ser humano distingue-se, aqui, da ovelha apenas pelo fato de que sua consciência assume para ele o lugar do instinto ou que seu instinto é um instinto consciente.   

 

Essa consciência de ovelha ou consciência tribal adquire seu desenvolvimento e formação adicional mediante a produtividade incrementada, o aumento das necessidades e mediante o crescimento da população que subjaz a ambos estes.

Com isso, desenvolve-se a divisão do trabalho que, originariamente, nada foi senão a divisão do trabalho no ato sexual e, a seguir, divisão do trabalho que se realiza espontânea ou "naturalmente", em virtude da predisposição natural (p.ex. a força corporal), necessidades, acasos etc. etc.

A divisão do trabalho aparece apenas realmente como tal, a partir do momento em que surge a divisão entre trabalho material e trabalho espiritual (Anotação de Karl Marx : Esta coincide com a primeira forma dos ideólogos, os padres).

A partir de então, a consciência pode jactar-se realmente de ser algo diferente da consciência acerca da prática existente, de conceber realmente algo sem conceber algo real. Desse momento em diante, a consciência é capaz de emancipar-se do mundo, passando à formação da teoria “pura”, da teologia, da filosofia, da moral etc.

Porém, mesmo quando essa teoria - a teologia, a filosofia, a moral etc. – surge em contradição com as relações existentes, pode isso apenas ocorrer porque as relações sociais existentes entraram em contradição com a força existente de produção, o que, aliás, em um círculo nacional determinado de relações, pode também ter lugar porque a contradição se processa não precisamente dentro desse círculo nacional, mas sim entre a consciência nacional e a prática das outras nações, i.e. entre a consciência nacional e a consciência geral de uma nação.

Além disso, é inteiramente indiferente o que a consciência sozinha começa a fazer.

Fora desse grande pântano de sujeira, alcançamos apenas o único resultado de que estes três momentos – a força de produção, a situação social e a consciência – podem e devem entrar em contradição entre si, pois que, com a divisão do trabalho, encontra-se dada a possibilidade, em verdade, a realidade de que a atividade espiritual e material – proveito e trabalho, produção e consumo – seja atribuída a indivíduos diferentes e que a possibilidade de não entrarem em contradição reside, por sua vez, apenas na supressão da divisão do trabalho.      

Ademais, é evidente que os “fantasmas”, os “laços”, “entes superiores”, “conceitos”, “escrúpulos” são meramente a expressão idealista-espiritual, a noção aparente do indivíduo isolado, a representação de entraves e barreiras empíricas, no interior das quais se movimeta o modo de produção da vida e a forma de circulação, com aquela interconexa.

 

Com a divisão do trabalho - na qual todas essas contradições estão dadas e a qual, por sua vez, assenta-se sobre a divisão natural do trabalho na família e a separação da sociedade em famílias singulares, opostas umas às outras -, encontra-se determinada, ao mesmo tempo, a distribuição, e, em verdade, a distribuição desigual, tanto em sentido quantitativo quanto em sentido qualitativo, do trabalho e de seus produtos, i.e. a propriedade que já possui seu embrião, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do homem.

A escravidão latente - ainda muito rudimentar - existente na família, é a primeira propriedade que, alias, já corresponde aqui inteiramente à definição dos economistas modernos, segundo a qual é a disposição sobre a força de trabalho alheia.   

Além disso, divisão do trabalho e a propriedade privada são expressões idênticas : em uma se declara em relação à atividade o mesmo que na outra se declara em relação ao produto da atividade. 

Ademais disso, encontra-se dada, com a divisão do trabalho, simultaneamente, a contradição, existente entre o interesse do indivíduo singular ou da família singular e o interesse comum de todos os indivíduos que interagem uns com os outros.

E, em verdade, esse interesse comum existe não apenas na imaginação, enquanto „interesse geral“, mas sim, de início, na realidade, enquanto dependência recíproca dos indivíduos, entre os quais o trabalho é dividido.

E, por fim, a divisão do trabalho apresenta-nos, desde logo, o primeiro exemplo de que, enquanto os seres humanos se encontram na sociedade natural, i.e. enquanto existe a cisão, havida entre o interesse particular e o interesse comum, i.e. enquanto a atividade não é divida de modo voluntário, mas sim de modo natural, a própria ação humana converte-se em um poder estranho, situado em oposição ao próprio ser humano, subjulgando-o, ao invest de ser subjulgado pelo próprio ser humano.

Com efeito, logo que o trabalho começa a ser dividido, cada um possui um círculo exclusivo determinado de atividade que lhe é imposto e do qual não se evade.

Um é caçador, outro, pescador ou pastor, outro ainda, crítico crítico, devendo continuar a sê-lo, se pretende perder os meios que asseguram a sua vida.

 

Pelo contrário, na sociedade comunista  - na qual ninguém possui um círculo exclusivo de atividade, podendo todos, inversamente, formarem-se em qualquer um dos ramos de atividades -, a sociedade regula a produção geral, permitindo precisamente por isso que me seja possível fazer isso, hoje, aquilo, amanhã, caçar, pela manhã, pescar, pela tarde, pastorear, pela noite, e, depois do almoço, criticar, tal como precisamente desejo, sem que seja caçador, pescador, pastor ou crítico.              

Essa fixação da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto em um poder material, situado sobre nós, o qual escapa ao nosso controle, opondo-se às nossas expectativas, aniquilando nossos cálculos, é um dos principais momentos do desenvolvimento histórico, existente até os nossos dias. 

Precisamente, a partir dessa contradição, havida entre o interesse particular e o interesse comum, é que esse último interesse assume, enquanto Estado, uma forma autônoma, separada dos reais interesses individuais e gerais. 

Surge, ao mesmo tempo, como uma comunidade ilusória, porém, permanentemente, fundada na base real dos laços existentes em todo o conglomerado da família e da clã - tal quais carne e sangue, língua, divisão do trabalho em grande escala e outros interesses e, especialmente, - tal como desenvolveremos a seguir - baseando-se sobre as classes, já condicionadas pela divisão do trabalho, as quais se destacam, em toda essa massa de seres humanos, e, em meio às quais, uma domina todas as demais.   

Disso decorre que todas as lutas, travadas no interior do Estado, a luta entre a democracia, a aristocraciamonarquia, a luta pelo Direito eleitoral etc. etc. não são senão formas ilusórias, nas quais são impulsionadas as lutas reais das diversas classes entre si (coisa de que os teóricos alemães nem sequer suspeitam, a despeito do fato de que lhes fornecemos suficientes indicações sobre isso nos "Anais Franco-Alemães" e na "Sagrada Família").

Além disso, resulta que cada classe, ao aspirar à dominação - mesmo que sua dominação, como é o caso do proletariado, seja, de modo geral, condicionada pela supressão de toda velha forma de sociedade e de dominação - deve, primeiramente, conquistar o poder político, a fim de novamente apresentar o seu interesse como o interesse geral, o que é forçada a fazer, em um primeiro momento. 

Justamente porque os indivíduos procuram apenas seu interesse particular que, para eles, não coincide com seu interesse comum – em verdade, o geral é a forma ilusória da vida em comunidade – torna-se este para eles um interesse “estranho” e deles “independente”, validado novamente como um interesse até mesmo particular e peculiar “geral”.

Ou, então, eles mesmos devem movimentar-se no interior dessa dicotomia, tal como na Democracia.

Por outro lado, a luta prática, travada entre esses interesses particulares que se confrontam, constantemente, na prática, os interesses comuns e comuns ilusórios torna uma necessidade a intervenção prática e o controle, realizada mediante o interesse “geral”-ilusório na forma do Estado.

O poder social, i.e. a força multiplicada de produção que surge através da interação dos diferentes indivíduos, condicionada pela divisão do trabalho não aparece diante desses indivíduos – visto que sua própria interação não é voluntária, mas sim natural - como seu próprio poder unitário, senão como um poder estranho, situado fora deles, sobre o qual não sabem de onde se origina e nem para onde vai, não mais o podendo, portanto, controlar.

Esse poder percorre, agora, pelo contrário, uma série peculiar de fases e níves de desenvolvimento, independente da vontade e do mover-se dos seres humanos, dirigindo, até mesmo, essa vontade e esse mover-se.

Essa “alienação” – para usar um termo que os filósofos compreendem – pode ser suprimida, evidentemente, apenas sob dois pressupostos práticos.

 

1.    A fim de que se torne um poder “intolerável”, i.e. um poder contra o qual se faz uma revolução, é necessário que tenha tornado a massa da humanidade inteiramente “despojada de propriedade” e, simultaneamente, colocando-a em contradição com um mundo de riqueza e de cultura. Ambos esses fatores pressupõe um grande incremento das forças produtivas, um elevado grau de seu desenvolvimento;

2.    Por outro lado, esse desenvolvimento das forças produtivas – com o que já se encontra, concomitantemente, estabelecida a existência empírica, presente no existir dos seres humanos em dimensão histórico-mundial, em vez de local – é, também por isso, um pressuposto prático absolutamente necessário, porque, sem ele, generaliza-se apenas a escassez, i.e. com a penúria teria de recomeçar também a luta pelo necessário e reconstruir-se toda a velha merda, porque, além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas estabelece-se um intercurso universal dos seres humanos que, por isso, produz, por um lado, em todos os povos, simultaneamente, o fenômeno das massas “despojadas de propriedade”  (concorrência geral) – cada um desses povos dependentes das revoluções ocorridas nos demais -, e que, por outro lado, finalmente, colocou indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, no lugar de indivíduos locais.            

 

Sem isso :

 

1. o comunismo poderia apenas existir como uma localidade;

2. os poderes do próprio intercurso não poderiam ter se desenvolvido como poderes universais e, por isso, intoleráveis. Teriam permanecido “circunstâncias” locais, marcadas pela superstição, e

3. toda e qualquer expansão do intercurso suprimiria o comunismo local.

 

Em sentido empírico, o comunismo é apenas possível como o ato dos povos dominantes “de uma só vez” e simultaneamente, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e a inter-relação mundial, a ele vinculado.

Caso contrário, como é que a propriedade poderia ter tido efetivamente uma história, assumindo diversas formas, e, p.ex. a propriedade fundiária, de acordo com as diferentes premissas existentes, ter-se imposto, na França, do parcelamento à centralização em poucas mãos, na Inglaterra, da centralização em poucas mãos ao parcelamento, como é o caso realmente nos dias de hoje?

Ou como ocorre de o comércio que, porém, nada mais é senão a troca dos produtos de diferentes indivíduos e países dominar o mundo inteiro através da relação da oferta e procura?

Ora, essa relação flutua, tal como afirma um economista inglês, sobre a terra, tal qual o destino da Antigüidade, distribuindo, com mão invisível, sorte e desgraça aos seres humanos, fundando e destruindo impérios, fazendo povos emergirem e desaparecerem.

E, pelo contrário, com a supressão da base da propriedade privada, com a regulação comunista da produção e da aniquilação nela implícita das características alienantes, nas quais os seres humanos se relacionam com o seu próprio produto, não se dissolve em nada o poder da relação da oferta e procura, retomando os seres humanos em seu poder a troca, a produção, o modo de seu mútuo relacionamento?            

 

Para nós, o comunismo não é uma situação que deve ser gerada, um ideal, segundo o qual a realidade haverá de se orientar.

Chamamos de comunismo o movimento real que suprime a presente situação.

As condições desse movimento resultam dos pressupostos hoje existentes.

Além disso, as massas de meros trabalhadores, uma força de trabalhadores massiva, separada do capital ou desprovida de qualquer satisfação mesmo que limitada e, por isso, despojados não mais temporariamente de seu próprio trabalho enquanto fonte segura de vida – pressupõem o mercado mundial.  

O proletariado pode apenas existir em escala histórico-mundial, assim como o comunismo, sua ação, pode existir, efetivamente, apenas como existência “histórico-mundial”.

Existência histórico-mundial dos indivíduos significa existência dos indivíduos que se encontram ligado diretamente com a história mundial.

A forma de troca, condicionada pelas forças de produção, existentes através de todos os estágios históricos até os dias de hoje, e que, por sua vez, novamente as condiciona, é a bürgerliche Gesellschaft (EvM.: a sociedade civil).

Esta - tal como já emerge do aqui exposto - possui como seu pressuposto e fundamento a família simples e a família composta, denominada clã, sendo que sua definição mais precisa já se encontra contida acima.

Do aqui exposto já resulta evidente que essa sociedade civil é a verdadeira fonte e o verdadeiro cenário de toda a história e quão absurda é a concepção tradicional da história, que negligencia as relações reais e se limita ao exame das retumbantes ações genéricas e do Estado.

A sociedade civil abarca o conjunto da circulação material dos indivíduos no interior de um nível determinado de desenvolvimento das forces produtivas. Abrange o conjunto da vida comercial e industrial de uma fase e, nessa medida, vai além do Estado e da nação, apesar de que, por outro lado, tem de se faz valer, novamente, para o domínio externo, enquanto nacionalidade e articular-se, para o domínio interno, como Estado.        

O termo “bürgerliche Gesellschaft(EvM.: sociedade civil e, aqui, particularmente, no sentido de sociedade burguesa) surgiu no século XVIII, quando as relações de propriedade já se haviam desprendido da comunidade antiga e medieval.

A sociedade civil enquanto tal desenvolveu-se apenas com a burguesia.

No entanto, a organização social que se desenvolveu diretamente a partir da produção e da circulação e que forma, em todas as épocas, a base do Estado e da superestrutura ideological adicional, foi permanentemente designada com esse mesmo nome.[3] 

 

 

(...) As concepções da classe dominante são, a cada momento, as concepções dominantes. (...)

As concepções dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, i.e. das relações materiais concebidas como pensamentos. (...)

Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam.

Na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que o façam em toda a sua extensão e, conseqüentemente, entre outras coisas, dominem também como pensadores, como produtores de concepções, que regulem a produção e a distribuição das idéias de seu tempo e que suas idéias sejam, por isso mesmo, as idéias dominantes da época.

Por exemplo : em uma época e em um país em que o poder real, a aristocracia e a burguesia lutam pelo domínio, onde o domínio se encontra pois dividido, surge como idéia dominante a doutrina da divisão dos poderes, que agora surge enunciada como uma “lei eterna.”[4]

 

 

(…)Uma  vez que o Estado é a forma, no interior da qual os indivíduos de uma classe dominante fazem prevalecer seus interesses comuns e toda a sociedade civil de uma época se reune, resulta que todas as instituições comuns são intermediadas pelo Estado, adquirindo uma forma política. Daí decorre a ilusão de que a lei se basearia na vontade e, com efeito, na vontade livre, destacada de sua base real. De modo semelhante, reduz-se, então, novamente o Direito  à lei.[5]

 

 

(...) A primeira forma de propriedade é, tanto na Antigüidade quanto na Idade Média, a propriedade gentílico-tribal, condicionada entre os romanos principalmente pela guerra, entre os germanos, pela agricultura.

Entre os povos da Antigüidade, porque estes habitam em comum, surge a propriedade gentílico-tribal como propriedade do Estado e, ao mesmo tempo, o direito do indivíduo em relação a esta enquanto mera possessio (EvM.:posse) que, entrentanto, se limita apenas à propriedade fundiária, tal qual a propriedade gentílico-tribal em geral.         

A efetiva propriedade privada inicia-se entre os povos antigos, tal qual entre os modernos, com a propriedade mobiliária (escravidão e comunidade) (dominium ex iure Quiritum < EvM. domínio proveniente do direito de plena cidadania romana).

Entre os povos emergentes da Idade Média, desenvolve-se a propriedade gentílico-tribal através de diversos níveis - propriedade fundiária feudal, propriedade mobiliária corporativa, capital manufatureiro - até ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, até à pura propriedade privada, de tal maneira que toda a aparência da propriedade comunal é eliminada e excluída toda a influência do Estado no desenvolvimento da propriedade.  

A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno que, gradativamente, mediante a imposição de tributos, passa a comprar dos proprietários privados, caindo, então, inteiramente nas mãos destes por força da dívida pública, tornando sua existência, marcada pela alta e pela baixa dos títulos públicos, cotados na bolsa de valores, completamente dependente do crédito comercial que lhe concedem os proprietários privados, i.e. a burguesia.      

Pelo simples fato de que a burguesia é uma classe e não mais um estamento, é forçada a organizar-se em escala nacional e não mais em nível local, vendo-se forçada a imprimir uma forma genérica a seu interesse mediano.

Por meio da emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, adquiriu o Estado uma existência particular, ao lado e fora da sociedade burguesa.

Continua sendo, porém, nada mais do que a forma da organização que os burgueses atribuem necessariamente a si mesmos, seja no domínio externo, seja no domínio interno, visando à garantia recíproca de sua propriedade e de seus interesses.         

Nos dias de hoje, verifica-se ainda a autonomia do Estado apenas nos países em que os estamentos não se desenvolveram inteiramente em classes, onde os estamentos, embora eliminados nos países mais avançados, ainda desempenham algum papel, existindo ali uma situação de entrecruzamento, i.e. naqueles países, portanto, em que nenhuma parte da população é capaz de impor a dominação sobre as demais.    

Esse é precisamente o caso da Alemanha.

O mais perfeito exemplo do Estado moderno é o Estados Unidos da América.

Os mais novos escritores franceses, ingleses e norte-americanos expressam todos eles a opinião de que o Estado existe tão somente por causa da propriedade privada, de modo que essa noção penetrou na consciência comum dos pensadores.           

Uma vez que o Estado é a forma na qual os indivíduos de uma classe dominante fazem valer seus interesses comuns, bem como o domínio em que se sintetiza a inteira sociedade civil, resulta que todas as instituições comuns são intermediadas pelo Estado e recebem, assim, uma forma política. 

Disso decorre a ilusão de que a lei seria baseada na vontade, assentando-se, propriamente, sobre a vontade livre, divorciada de sua base real.  

De modo similar, é, por sua vez, o Direito reduzido à lei.

O Direito Privado desenvolve-se a passo e passo com a propriedade privada, a partir da desintegraçã da comunidade natural.

Entre os romanos, o desenvolvimento da propriedade privada e do Direito Privado ficou sem conseqüências industriais e comerciais adicionais, porque todo o seu modo de produção não se alterou. (Anotação de Friedrich Engels : Usura!)

Junto aos povos modernos, onde a comunidade feudal foi dissolvida pela indústria e pelo comércio, teve início, com o surgimento da propriedade privada e do Direito Privado uma nova fase, capaz de atingir um desenvolvimento suplementar.

Já a primeira cidade que, na Idade Média, impulsionou um vasto comércio marítimo, a cidade de Amalfi, foi quem também aprimorou o Direito Marítimo.

Tão logo a indústria e o comércio desenvolveram adicionalmente a propriedade privada - de início na Itália e depois em outros países - foi, imediatamente, adotado, por mais uma vez, o refinado Direito Privado Romano e elevado à condição de autoridade. 

Quando, posteriormente, a burguesia adquiriu tanto poder a ponto de os princípes assumirem seus interesses, para, com os meios da burguesia, derrubarem a nobreza feudal, teve início em todos os países - especialmente na França do século XVI - o efetivo desenvolvimento do Direito, processo este ocorrido em todos os países - com exceção da Inglaterra - sobre a base do Codex Romano

Porém, também na Inglaterra, os princípios do Direito Romano tiveram de ser introduzidos, visando à formação suplementar do Direito Privado, especialmente no domínio da propriedade mobiliária. 

Importa não esquecer que o Direito não possui uma história prrópria, tampouco como a religião,

No Direito Privado, as relações de propriedade existentes são declaradas enquanto resultado da vontade geral

ius utendi et abutendi (EvM.: o Direito de usar e desgastar - consegüintemente também de abusar) declara, por um lado, o fato de que a propriedade privada tornou-se inteiramente independente da comunidade e afirma, por outro lado, a ilusão de que a própria propriedade privada assentar-se-ia sobre a mera vontade privada, a disposição arbitrária da coisa. 

Na prática, o abuti (EvM.: o desgastar, também abusar) possui, porém, limitações econômicas bem determinadas para o proprietário privado, se não deseja ver sua propriedade e, com ela, seu ius abutendi passarem às mãos de outras pessoas, pois que, efetivamente, a coisa, considerada meramente em relação à vontade do proprietário, não é absolutamente uma coisa, senão torna-se uma coisa, uma propriedade real, apenas no comércio e independentemente do Direito. Eis aí uma relação à qual os filósofos dão o nome de idéia.[6]

 

 

Essa ilusão jurídica que reduz o Direito à mera vontade conduz, no curso do desenvolvimento subseqüente das relações de propriedade, necessariamente a que alguém possa possuir um título jurídico de uma coisa sem que realmente possua a coisa.

Se, por exemplo, em razão da concorrência, resulta eliminada a renta de uma parcela fundiária, possui, então, o proprietário da mesma, por certo, seu título jurídico em relação a ela, juntamente com o ius utendi et abutendi.

Porém, com este nada pode fazer. Nada possui enquanto proprietário fundiário, caso ainda não possua, adicionalmente, capital suficiente para cultivar seu solo.

A partir da mesma ilusão dos juristas, pode-se esclarecer que, para eles, bem como para todo e qualquer Codex (EvM.: código), é inteiramente fortuito o fato de que indivíduos ingressem em relações, travadas entre si - e.g. os contratos -, e considerem-nas como passíveis de serem mantidas ou não, conforme sua livre vontade, assentado-se o conteúdo destas inteiramente sobre o arbítrio individual dos contraentes. 

Tão logo se formavam novas formas de intercâmbio, mediante o desenvolvimento da indústria e do comércio - tais quais sociedades por ações -, era o Direito sempre forçado a acolhê-las, entre os modos de aquisição da propriedade.[7]

 

 

(…) Decorre de todo o desenvolvimento apresentado até aqui que a relação comum, na qual ingressavam os indivíduos de uma classe, e que era condicionada pelos interesses comuns em face de terceiros, havia sido sempre uma comunidade à qual pertenciam esses indivíduos apenas enquanto indivíduos médios, apenas na medida em que viviam nas condições existenciais de sua classe, relação essa em que participavam não como indivíduos, mas sim como membros de uma classe.         

Pelo contrário, na comunidade dos proletários revolucionários que coloca sob seu controle suas próprias condições de existência, bem como as de todos os membros da sociedade, trata-se precisamente do contrário.

Nela, os indivíduos participam como indivíduos.

É exatamente a união dos indivíduos (evidentemente no marco do pressuposto das forças produtivas no futuro desenvolvidas) o que posiciona as condições do livre desenvolvimento e movimento dos indivíduos sob o próprio controle destes, condições essas que, até então, estavam relegadas ao acaso e haviam-se autonomizado contra os indivíduos isolados, justamente por meio de sua separação enquanto indivíduos,  e, em virtude de sua necessária unificação, determinada pela divisão do trabalho, tornara-se, devido àquela mesma separação, um vínculo estranho a eles mesmos.             

A união, existente até o presente (de nenhuma forma uma união arbitrária, como p. ex. é apresentada no "Contrat social" (EvM.: de Jean-Jacques Rousseau), mas sim necessária) foi uma união, firmada sobre essas condições, em cujo interior os indivíduos possuíam, outrora, o desfrute da sorte (vide p. ex. a formação estatal dos Estados Unidos da América e das Repúblicas da América do Sul).  

Esse direito de poder gozar, no quadro de certas condições, do fortuito, foi, até os dias de hoje, denominado liberdade pessoal.  

Naturalmente, essas condições de existência são apenas as forças de produção e as formas de comércio de cada momento em particular.

Contemplando-se filosoficamente esse desenvolvimento dos indivíduos, no interior das condições comuns de existência dos estamentos e das classes historicamente sucessivas e no quadro das representações gerais que lhes são juntamente com aquelas impostas, pode-se, com efeito, facilmente imaginar que, nesses indivíduos, haver-se-ia desenvolvido o gênero ou o ser humano ou ainda que esses indivíduos desenvolveram o ser humano.

Eis aí uma presunção com a qual se dá à história umas fortes bofetadas.[8]      

 

 

Pode-se conceber, então, esses diferentes estamentos e classes como especificações da expressão geral, como súditos do gênero,  como fases de desenvolvimento do ser humano.

Essa subsunção dos indivíduos sob determinadas classes não pode ser suprimida até que se tenha formado uma classe que não mais imponha um interesse de classe particular contra a classe dominante   

Os indivíduos sempre partiram de si mesmos, fizeram-no, naturalmente, porém, partindo de si mesmos no interior de suas condições  e relações históricas dadas, não a partir de um indivíduo "puro", no sentido formulado pelos ideólogos.

Porém, no curso do desenvolvimento histórico e precisamente através da inevitável autonomização das relações sociais, no quadro da divisão do trabalho, emerge uma diferença no seio da vida de cada indivíduo, na medida em que esta é vida pessoal e tendo em vista que se encontra subsumida sob um setor qualquer do trabalho e as condições que lhe pertencem. (Não se deve entender isso de tal forma que, p.ex. o rentista, o capitalista etc. deixem de ser pessoas, mas sim no sentido de que a personalidade deles é condicionada e determinada através de relações de classes inteiramente definidas e a diferença em causa surge apenas em oposição a uma outra classe e, para eles mesmos, apenas quando vão à falência).

No estamento (e ainda mais na comunidade gentílica), isso se encontra ainda acorbertado. Um nobre, p.ex., permanece sempre um nobre, um membro comum, sempre um membro comum, permanece, abstraindo-se de suas demais relações, uma qualidade inseparável de sua individualidade.

A diferença existente entre o indivíduo em pessoa e o indivíduo da classe, o acaso das condições de vida para o indivíduo, surge apenas com a emergência da classe a qual é, ela própria, um produto da burguesia.

É tão somente concorrência e a luta, travada entre os indivíduos uns contra os outros, que produz e desenvolve esse acaso enquanto tal. 

Por isso, no domínio da imaginação, os indivíduos são mais livres, na dominação burguesa, do que o foram antes, porque suas condições de vida são-lhes casuais.

Na realidade, possuem, evidentemente, menos liberdade, porquanto estão mais subjulgados ao poder objetivo das coisas.

A diferença do estamento surge, particularmente, no antagonismo existente entre burguesia e proletariado.

Quando o estamento dos cidadãos dos municípios, as corporações etc. surgiram, diante da nobreza fundiária, sua condição existencial - a propriedade mobiliária e o trabalho artesanal, que já haviam existido antes de sua separação dos laços feudais -, apareceu como algo positivo que foi afirmado contra a propriedade fundiária feudal, assumindo, por isso, de início, mais uma vez a forma feudal, em seu modo de ser.   

Certamente, os vassalos fugitivos trataram sua servidão, até então existente, como algo casual para sua personalidade.

Nisso, porém, faziam apenas o mesmo que faz cada classe, ao libertar-se de um entrave.

E, então, libertaram-se não como classe, senão isoladamente.

Além disso, não saíram do campo do sistema estamental, mas sim construíram um novo estamento, conservando seu precedente modo de trabalho também na nova situação, e continuaram a construí-lo, libertando-o de suas cadeias, até então existentes, que não mais correspondiam ao seu desenvolvimento já alcançado. (...)

Pelo contrário, para os proletários, sua própria condição de vida, o trabalho, e, com ele, todas as condições existenciais da sociedade atual, tornou-se algo do acaso, sobre o qual os proletários, considerados individualmente, não possuem controle algum e nenhuma organização social pode-lhe fornecer um controle.

A contradição, existente entre a personalidade do proletário singular e sua condição de vida que lhe é imposta, seu trabalho, surge para dele de modo evidente, particularmente porque, desde sua juventude, é sacrificado, faltando-lhe a oportunidade de, no interior de sua classe, atingir as condições que o colocariam na outra classe.[9] 

 

          

 

(...) Quando o burguês de visão limitada diz aos comunistas"Ao abolirdes a propriedade, i.e. minha existência como capitalista, proprietário fundiário, fabricante e, também, a vossa existência como trabalhadores, abolis a minha existência e a vossa. Tornando impossível o fato de que eu vos explore como trabalhadores, embolsando o meu lucro, meus juros ou minhas rendas, tornais impossível que eu exista como indivíduo." ; quando o burguês, portanto, declara aos comunistas : "Ao abolirdes minha existência como burguês, abolis minha existência como indivíduo" ... ; quando, portanto, como burguês, identifica-se consigo mesmo enquanto indivíduo, deve-se nisso, no mínimo, reconhecer sua franqueza e sua insolência.  

Para o burguês, é esse, de fato, o caso. Pois, acredita ser ele mesmo um indivíduo apenas na medida em que seja burguês. Porém, tão logo surgem os teóricos da burguesia e dão a essa afirmação uma expressão geral, ao identificarem, também em sentido teórico, a propriedade do burguês com a individualidade, pretendendo, além disso, justificar logicamente essa mesma identificação, começa o absurdo a tornar-se solene e sagrado.

"Stirner" refuta acima a abolição comunista da propriedade, ao transformar a propriedade privada em um "ter", declarando, em seguida, o verbo "ter" como uma palavra imprescindível, uma verdade eterna, porque até mesmo na sociedade comunista poderia ocorrer de "Stirner" "ter" uma dor de barriga.   

Da mesmíssima maneira, fundamenta a impossibilidade de abolição da propriedade privada, ao transformar essa última no próprio conceito de propriedade, explorando o contexto etimológico, existente entre as palavras "Eigentum (EvM.: propriedade)" e "eigen (EvM.: próprio)", para declarar a palavra "eigen" como uma verdade eterna, porquanto igualmente poderia ocorrer de, no regime comunista, uma dor de barriga lhe ser "eigen(EvM.:própria").       

Todo esse absurdo teórico que procura seu refúgio na etimologia seria impossível se a propriedade privada real que os comunistas tem o propósito de abolir não tivesse sido transformada no conceito abstrato de "propriedade".  Nesse transformismo, poupa-se, por um lado, o esforço de ter de se dizer algo - ou mesmo apenas saber algo - sobre a propriedade privada real e, por outro lado, pode-se facilmente chegar à descoberta de uma contradição no comunismo, uma vez que, após a abolição da propriedade (real), torna-se possível descobrir, sem qualquer custo, todas as coisas imagináveis, passíveis de serem subsumidas sob o conceito de "propriedade".    

Na realidade, a situação comporta-se, evidentemente, de modo precisamente inverso. Em verdade, só possuo propriedade privada na medida em que possuo alguma coisa vendável, visto que minha Eigenheit (EvM.: peculiaridade) não é absolutamente passível de ser vendida. Meu traje é minha propriedade privada apenas na medida em que o puder, no mínimo, vender, transferir ou alienar, i.e. apenas na medida em que for vendável.

Perdendo essa sua característica, por tornar-se um farrapo, pode ainda assim deter para mim todos os tipos de qualidades que o fazem valioso ante os meus olhos. Pode até mesmo converter-se em uma minha qualidade de vida, por tornar-me um indivíduo esfarrapado. Porém, não passará pela cabeça de nenhum economista a idéia de o elencar como minha propriedade privada, já que não mais me confere comando algum sobre nenhuma quantidade de trabalho alheio que seja, ainda que extremamente ínfima.   

O jurista, o ideólogo da propriedade privada, pode, talvez, ficar ainda divagando em uma coisa dessas.

A propriedade privada aliena não apenas a individualidade dos seres humanos, senão também a das coisas. O solo e a terra nada tem a ver com a renda fundiária e nem tampouco a máquina, com o lucro. Para o proprietário fundiário, o solo e a terra possuem apenas o significado da renda fundiária, arrenda seu pedaço de terra, percebendo a renda. Eis aí uma característica que a terra pode peder, sem que perca nenhuma de suas características inerentes, p.ex. sem perder uma parte de sua fertilidade, característica essa cuja dimensão e até mesmo cuja existência depende de relações sociais, criadas e destruídas sem a cooperação do proprietário fundiário individual.  

O mesmo sucede com a máquina. Quão pouco o dinheiro, a forma mais geral de propriedade, tem a ver com a peculiaridade de uma pessoa, quão muito opõe-se diametralmente a ela, sabia-o já Shakespeare bem melhor do que nosso pequeno-burguês metido a teórico :        

 

“Assim, muito disso fará o preto ficar branco; o repugnante, justo;

o errado, certo; o vulgar, nobre;

o velho, jovem; o covarde, valente.

Esse escravo amarelo...

fará a terrível lepra adorada ...

É isso que é, 

Fará a viúva idosa casar novamente;

ela que padece do hospital e da úlcera,

livrar-se-ia da execração, pois embalsama e aromatiza,

novamente para o dia de abril...

Tu, deus visível,

que solidariza estreitas impossibilidades,

faça eles se beijarem!

[Shakespeare, Timon of Athens (Timão de Atenas), Act IV, Scene 3][10]

 

 

(...) O comunismo é puramente incompreensível para o Nosso Santo (EvM.: i.e. São Max, i.e. Max Stirner), porque os comunistas não invocam nem o egoísmo contra o sacrifício, nem o sacrifício contra o egoísmo, não concebendo, teoricamente, essa oposição nem uma forma ideológica cômoda, nem em uma exuberante: demonstram, pelo contrário, seu local de nascimento, no qual desaparece por si mesma.

Os comunistas não pregam absolutamente nenhuma moral, coisa que Max Stirner faz, em medida extensíssima.

Perante os seres humanos, não levantam as reivindicações morais de “Amai-vos uns aos outros”, ”Não sejais egoístas” etc.

Pelo contrário, sabem muito bem que o egoísmo, tal qual o sacrifício, é uma forma necessária entre muitas relações determinadas de afirmação dos indivíduos.

Portanto, os comunistas não querem, absolutamente – tal como acredita São Max e como reza, em tom de ladainha, seu fiel Dottore Graziano (EvM.: i.e Arnold Ruge), razão pela qual São Max, Wigand, p. 192, o chama de “cabeça política e tremendamente esperta”) suprimir o “ser humano privado”, por amor ao ser humano “geral” -  o ser humano que se “sacrifica” -, presunção esta cujo necessário esclarecimento ambos já poderiam ter ido colher nos “Anais Franco-Alemães”.

Os comunistas teóricos – os únicos que têm tempo para se ocupar com a história – distinguem-se precisamente pelo fato de tão somente eles terem descoberto, em toda a história, a criação do “interesse geral” pelos indivíduos, determinados como “seres humanos privados”.

Sabem que se trata de uma oposição apenas aparente, pois que um dos lados, o assim denominado “geral”, é continuadamente produzido pelo outro lado, o interesse privado, não constituindo, de modo algum, em relação a este, um poder autônomo, dotado de uma história autônoma, i.e. sabem que essa oposição é, continuadamente, aniquilidada e gerada, de modo prático.

Portanto, não se trata de uma “unidade negativa” hegeliana de dois lados de uma oposição, mas sim de uma aniquilação materialmente condicionada de um modo existencial dos indivíduos, materialmente condicionado até os nossos dias, com o qual aquela oposição desaparecerá, concomitantemente e juntamente com sua unidade.[11]

 

 

 

(...) ”Stirner” precisa introduzir, agora, uma determinação empírica do Direito que possa reivindicar para o indivíduo, i.e. tem de reconhecer no Direito alguma outra coisa mais do que a santidade.

Nisso, poderia ter economizado todas as suas complicadas maquinações, porquanto desde Machiavelli, Hobbes, Spinoza, Bodin etc., na Idade Moderna, para nem falar dos mais recentes pensadores, o poder é apresentado como fundamento do Direito.

Com isso, a concepção teórica da política foi emancipada da moral, concedendo-se, assim, nada mais do que o postulado de um tratamento autônomo da política.

Posteriormente, na França do século XVIII e na Inglaterra do século XIX, todo o Direito foi reduzido ao Direito Privado - tema do qual São Max nem fala -, e esse último Direito, por sua vez, reduzido a um poder totalmente determinado, o poder do proprietário privado, ainda que as pessoas não se contentem de maneira nenhuma com essa simples frase.

Santo Sancho extrái, entao, a determinaçao do poder a partir do Direito e ilustra-a da seguinte forma :

 

“Costumamos classificar os Estados segundo seu diferente modo, tal como é repartido o “Poder Supremo” ... i.e. o Poder Supremo !

Poder contra quem ? Contra o indivíduo ... o Estado exerce o poder ... o comportamento do Estado é violência e seu poder é por ele denominado de Direito ...

A coletividade .... tem um poder que é designado justamente, i.e. que é o Direito(pp. 259, 260).”

 

Através do “nosso” “costume”, o nosso santo chega ao seu saudoso poder e consegue, agora, “cultivar-se” apenas a si mesmo.

 

Direito, o poder dos homens - - poder, o Direito que me pertence

 

Equações intermediárias :

ter Direito = ter poder

adquirir Direito = adquirir poder

 

Antítese :

ter Direito a partir dos homens – ter poder por mim mesmo

 

A primeira antítese :

Direito, poder dos homens – poder, o Direito que me pertence

 

Transforma-se agora em :

 

Poder que me pertence

Direito do homem

Meu poder

 

pois que são indênticos, na tese, Direito e poder e, na antítese, precisam ser “retomadas” os “semi-modos de expressão”, depois que o Direito “perdeu todo o sentido”, tal como acabamos de ver.

 

Nota Nr. 1 – Experimentos de paráfrases bombásticas e renomadas das antíteses e equações supra-referidas :

 

“Para Tu seres, tens o poder, para isso tens o Direito.”

“De mim mesmo, Eu deduzo todo o Direito e todo o lícito.

Tenho Direito a tudo em relação ao que Eu tenho poder.”

“Nao exijo nenhum Direito, por isso Eu não preciso reconhecer nenhum Direito. 

O que consigo impor a Mim Mesmo, imponho-Me e o que não imponho, em relação a isso Eu não tenho também nenhum Direito ...

Lícito ou ilícito – isso não me concerne :  Se sou mesmo poderoso, tenho poder já por mim mesmo e não careço de nenhuma concessão de poder ou autorização.(p. 248, 275)” 

 

Nota Nr. 2 – Experimentos do modo segundo o qual Santo Sancho desenvolve o poder enquanto a base real do Direito :

Assim, dizem “os” “comunistas” (por meio de que fonte apenas Stirner tudo sabe sobre o que dizem os comunistas, visto que, além do memorando de Bluntschli, da “Filosofia Popular” de Becker e algumas outras poucas coisas, nada recebeu dos comunistas para ver?):

 

“O trabalho igual autoriza os homens à igual fruição ...

Não ! O trabalho igual a isso não te autoriza, senão apenas a igual fruição autoriza-te à igual fruição.

Usufrui, pois assim estarás autorizado à fruição ...

Se vós assumis a fruição, ela é,  então, vosso Direito.

Se, pelo contrário, apenas aspirardes, sem tomar com garra, continuará ela permanecendo um “Direito adquirido” daqueles que são privilegiados para a fruição.

A fruição é vosso Direito, tal como ela se tornará vosso Direito mediante o ato de tomar com garra(p. 250).”         

 

Acerca do que aqui se coloca na boca dos comunistas, compare-se acima o que é dito sobre o “comunismo”.

Santo Sancho presume aqui, novamente, os proletários como uma “sociedade fechada” que tem de apenas tomar uma resolução acerca do “tomar com garra” para, no dia seguinte, colocar um fim, sumariamente, em toda a ordem mundial até então existente.

Porém, na realidade, os proletários atingem essa unidade apenas através de um longo desenvolvimento, um desenvolvimento no qual o apelo ao seu Direito (EvM.: i.e. o apelo ao Direito dos Proletários) desempenha também um papel.  

Esse apelo ao seu Direito (EvM.: i.e. apelo ao Direito dos Proletários) é, a próposito, apenas um meio de os constituir “Nela”, de os tornar uma massa unificada, revolucionária.

No que concerne ao parágrafo, Santo Sancho constrói, do início ao fim, um exemplo brilhante da tautologia de como se torna imediatamente claro do que pode acontecer, sem prejuízo do conteúdo, caso se esvazie tanto o poder como o Direito.

Em segundo lugar, o próprio Santo Sancho faz uma diferenciação entre patrimônio pessoal e material, com o que, então, diferencia, para divertir-se, entre usufruir e poder.

Posso gozar de grande poder (capacidade), sem que, por isso, precise ter também o poder material (dinheiro ...).

Meu verdadeiro “usufruir” continua a ser hipotético.[12]

 

 

 

EDITORA DA ESCOLA DE AGITADORES E INSTRUTORES

“UNIVERSIDADE COMUNISTA REVOLUCIONÁRIA J. M. SVERDLOV”

PARA A FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E DIREÇÃO MARXISTA-REVOLUCIONÁRIA

DO PROLETARIADO E SEUS ALIADOS OPRIMIDOS

MOSCOU - SÃO PAULO - MUNIQUE – PARIS

 

 

 



[1] Cf. MARX, KARL & ENGELS, FRIEDRICH. Die deutsche Ideologie. Kritik der neusten deutschen Philosophie in ihren Repräsentanten Feuerbach, B. Bauer und Stirner und des deutschen Sozialismus in seinen verschiedenen Propheten (A Ideologia Alemã. Crítica da Mais Moderna Filosofia Alemã - em Seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner - e do Socialismo Alemão, em Seus Diferentes Profetas)(1845 – 1846), in : ibidem, Vol. 3, Berlim : Dietz, 1969,  pp. 5 e s.  Assinalo que a obra de Marx e Engels em referência foi publicada, pela primeira vez, em língua alemã, apenas em 1932, segundo o original, situado em mãos do Instituto Marx-Engels-Lenin de Moscou.

[2] Cf. IDEM, ibidem, Vol: 1: Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte  I: Feuerbach – Oposição entre Visão Materialista e Visão Idealista (Introdução),  Letra A : A Ideologia Genericamente Considerada, em Particular a Ideologia Alemã, pp. 25 e s.

[3] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte I: Feuerbach – Oposição entre Visão Materialista e Visão Idealista (Introdução),  Letra A : A Ideologia Genericamente Considerada, em Particular a Ideologia Alemã, (1) História, pp. 30 e s.

[4] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte I: Feuerbach – Oposição entre Visão Materialista e Visão Idealista (Introdução),  Letra A : A Ideologia Genericamente Considerada, em Particular a Ideologia Alemã, (2) Sobre a Produção da Consciência, p. 46.

[5] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte I: Feuerbach – Oposição entre Visão Materialista e Visão Idealista (Introdução),  Letra B: A Verdadeira Base da Ideologia, (2) Relação do Estado e do Direito para com a Propriedade, p. 62.

[6] Anotação de Emil Asturig von München : Nesse passo, Marx acrescenta o seguinte em pé de página : ”Relação para os filósofos = idéia. Estes conhecem apenas a relação "do ser humano" para consigo mesmo e, por isso, para eles, todas as relações reais tornam-se idéias.”

[7] Cf. IDEM. ibidem, pp. 63 e s.   

[8] Anotação de Emil Asturig von München : Nesse passo, Marx e Engels formulam a seguinte nota ao texto em tela : A afirmação, freqüentemente encontrada em Sankt Max, de que cada um é tudo o que é por meio do Estado é, no fundo, a mesma que afirma que o burguês é apenas um exemplar do gênero burguês. Uma afirmação que pressupõe que a classe dos burgueses já existia antes dos indivíduos que a constituíram. (Em glossa marginal a essa sentença, assinala Marx: nos filósofos, preexistência da classe.”

[9] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte I: Feuerbach – Oposição entre Visão Materialista e Visão Idealista (Introdução),  Letra C: Comunismo. Produção da Própria Forma de Circulação, Vol. 3, pp. 74 e s.

[10] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte III: São Max, Capítulo 1. O Ser Único e sua Propriedade, Nr. 6. Os Seres Livres, B) O Comunismo, pp. 212 e s.

[11] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte III: São Max, Capítulo 1. O Ser Único e sua Propriedade - Novo Testamento, Nr. 2. A Fenomenologia do Egoísta para Consigo Mesmo ou a Doutrina da Justificação, p. 229.

[12] Cf. IDEM. ibidem, Vol. 1 : Crítica da Filosofia Alemã Mais Moderna em seus Representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, Parte III: São Max, Capítulo 1. O Ser Único e sua Propriedade – O Novo Testamento : “Eu”, Nr. 5.A. O Apropriador. Meu Poder, Inciso I: O Direito, C) Apropriaçao Mediante Antítese Composta, pp. 303 e s.